sexta-feira, dezembro 21, 2007

Carta a Rosana


Porto Alegre, 22 de dezembro de 1986.


Cara Rosana,


eis-me aqui após tanto tempo, sei nem por que razão. Se ao menos tu tiveres aberto por curiosidade a carta, já me quedo por satisfeito. E, se além disso, tiveres coragem de ler estas palavras, saiba que é através delas que venho te pedir perdão.

Perdão de um homem envergonhado de seu passado. Um homem que abandonou seu lar e seus queridos e fugiu de suas responsabilidades, impulsionado pelo ato egoísta e pueril de buscar sua liberdade além dos limites de onde poderia ser feliz.

Há 40 anos não nos falamos, Rosana, mas saiba que durante todo este tempo, não importando a variedade de experiências que colhi longe de ti, em momento algum esqueci-me do quanto havia falhado. E se a vergonha pelo abandono covardemente me impedia de te olhar novamente nos olhos, ao mesmo tempo a insanidade de seguir adiante me impulsionava neste sonho fingido.

Um sonho fingido que me trouxe outra família, a qual amo incomensuravelmente. Nesta busca, descobri uma nova função, pondo em prática todas as minhas habilidades como artesão, o que me proporcionou a dignidade necessária de manter minha atual família. Mas isso tudo, Rosana, nunca me fez esquecer da família que abandonei. Mesmo porque, o abandono de outrora foi necessário para que esta existisse. E quando me vejo nos álbuns de família, ainda me imagino segurando outro carrinho de bebê. Vejo-me ao teu lado, em nosso simples casamento. Vejo, nessa época de Natal, ajudando a montar outra árvore, noutro lugar. E não posso controlar as lágrimas, diante de tal aflição.

Diante de tanto sofrimento, que, enfim, decidi tentar traduzir nestas letras, rogo-lhe toda tua compaixão, que sempre lhe foi tão inerente. Aprendi ao longo do caminho que a felicidade é um misto de compatibilidade, sorte e oportunidade. Juntos, tivemos pouco de tudo isso. Mas separados, eu tive ainda menos. Minha companhia todos esses anos, além de todos os ingredientes que me proporcionaram a lucidez de, após tanto tempo, lançar-lhe tal redenção, sempre foi a do remorso. Todas as minhas ações traziam no verso as lembranças de meu passado. E teu rosto nele sempre esteve estampado, Rosana. Não me acusando, mas me lembrando dolorasamente de meus erros injustificáveis.

Desta forma, despeço-me, sem em nenhum momento propor-lhe tregüas e chances para que possamos reviver infelicidades. Venho, sinceramente, como um de meus últimos atos nesta vida, enfim claramente render-me à sua hombridade e fortaleza, por ter, ainda em tenra idade, suportado uma vida inteira as dificuldades de ter sido abandonada pelo marido, e, conseqüentemente, ver-se sozinha com dois filhos para criar.

Quanto às crianças, que hoje devem ser grandes pessoas, sempre guardei no peito lembranças carinhosas. São filhos dos quais abdiquei. E se há maior vergonha que um ser humano um dia possa ter antes de deixar este plano, é justamente esta, Rosana. Apesar de pela vida ter acertado em muitos pontos, errei seriamente numa parte essencial dela. E este erro, se não me foi cobrado em vida, deverá certamente me perseguir por todo o sempre.

Portanto, Rosana, perdoe este velho, que não lhe pede nada, além de uma demorada, porém única oportunidade de ter, no mínimo, como lidos seus desabafos.

Espero que eu tenha acertado no endereço.

Um beijo afetuoso daquele que um dia negou-lhe afeto,

mas, hoje, humildemente, vem oferecer seu mais sincero pedido de perdão,


Amaro Inácio de Pontes

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