segunda-feira, dezembro 31, 2007

Feliz Dia novo


Chuva de espuma embaçando os fogos artificiais.

Como o abraço que te deram minutos atrás.

O vinho vermelho mancha o seu vestido branco

escorrendo pelo colo e pelo chão.

Vomita o que de ruim passou

enquanto o dia não amanhece.

Porque um novo ano chega

e tudo que fica

é uma rotina

que permanece.

sexta-feira, dezembro 28, 2007

Carta a Inácio






Recife, 13 de março de 1987.







Inácio,



sabe a emoção de realizar algo que julgava já perdido? Como deve ser o sentimento de um segundo lugar fadado à medalha de prata que encontra num último momento o fôlego para chegar ao ouro. É esse o meu estado de espírito no momento.

Contudo, se acha que um alívio me acompanha, engana-se. Carrego nestas letras o regozijo do orgulho de vê-lo tentar se redimir. Não que me admire a sua atitude, pois se arrepender com atraso de décadas é facílimo, mas que, nesse jogo destrutivo chamado vida, enfim me sinto campeã em relação a você. Não ganho nada com isto, porém a sua redenção, embora tardia, me liberta. Ela me desata dos grilhões que você deixou ao partir.

Saiba, Inácio, que você levou consigo parte de mim. E esta parte, que tanto me fez falta, não me foi recuperada com o tempo. Além de me tirar o chão naquela época, você me roubou a capacidade de acreditar numa nova chance de ser feliz. Tive seqüestrada por você a confiança de que precisava para recomeçar minha vida. Menos me dói perceber que você foi covarde comigo. Afinal, assuntos do meu coração não dependem apenas da intensidade de sentimento, mas também de valores os quais você nunca sequer demonstrou: coragem e honestidade.

O que realmente me afligiu à época, e sedimentou-se ao longo dos anos, foi sua fuga de responsabilidade para com seus filhos. A mim você não deve perdão. A mim vôcê não deve respeito. Afinal, estes já foram sacrificados tempos atrás, quando a porta agora à minha frente fechou-se ante suas costas para sempre. Porém, os laços com seus filhos, voluntariamente rompidos por sua própria iniciativa, cruelmente formam cicatrizes invisíveis, que sangram sempre que as memórias aparecem. Estes laços, Inácio, não afirmo serem irrecuperáveis, mas prezo que, para serem refeitos, tenha a magnitude da justiça frente à crueldade com a qual foram cortados.

Respondo-te com a aflição de uma mãe que teme as portas reabertas. Sei que hoje meus filhos não mais são crianças, e que do alto da maturidade, seriam capazes de absorver o seu inesperado pronunciamento. Contudo, após refletir bastante sobre o tema, resolvi por enquanto nao revelar-lhes as novidades.

Note nossas diferenças: enquanto em sua carta você tratou de seus filhos como um ponto obrigatório, trago-os como o meu assunto principal. Pois acompanhei de perto os desdobramentos de sua ausência nos meus ultra-esforços de duplicação. Logo, é basicamente nisso que penso: menos em mim, mais neles. Já desisti há anos de tentar entender suas atitudes desmedidas, e agora tampouco o farei. Menos ainda tecerei razões pelas quais acredito não haver mais motivos para te conceder perdão. Apenas posso eleger como motivo principal o fato do poderoso tempo ser capaz de sedimentar as mais terríveis tragédias. E este me fez perceber que o que anteriormente se apresentou a mim como uma lástima, hoje representa um dos maiores fatores para o meu engrandecimento. Assim, tenho mais orgulho de mim agora do que jamais tive no passado.

A fim de te informar, saiba que também reconstruí a minha vida a muito esforço, haja vista as resistências que passei a cultivar quando do seu abandono. Hoje sou viúva de um grande homem, que além de ter se dado como presente a mim durante nossos anos juntos, me deu mais dois filhos.

Hoje, eu e minhas quatro prendas seguimos juntos e felizes dentro de nossas possibilidades. Pena que dois deles não tenham tantos motivos para admirar suas origens paternas, mas adotaram com muito carinho o pai suplente que a vida por uma graça lhes concedeu. E, hoje, conseguem exercer tal função, a paternidade, através de um bom exemplo.


Desejo-lhe paz e saúde,


e com o tremor em cada linha, tambem desejo distância


de você.


Rosana Aguiar de Fonseca.

segunda-feira, dezembro 24, 2007

Pausa para a ceia


Chegue atrasado, até meio sem jeito
cumprimente a todos, embora durante o ano não tenha feito
mas leve o presente do amigo secreto
aquela camisa listrada de número incerto
pro tio que está tão longe, de tão perto


Encene alegria e felicidade estampada
como se a harmonia estivesse sempre de pé
engrene logo uma conversa que floreie o tédio
tome nos intervalos dos papos aquele remédio
que te ajude a suportar a dor de um sorriso qualquer


Coma pouco, e bem rápido, pra adiantar a despedida
Não há saída, elogie todo o menu, do porco ao peru
E ainda com comida na boca, se despeça
Dizendo-se cansado por ter trabalhado até tarde
e, sem alarde, busque a primeira resposta
que te leve ao seu mundo quieto, correto e banal
Lembrando sempre que, apesar de tudo, como diz na loja,


é Natal.


(desarme o presépio e abra alas ao carnaval)


sexta-feira, dezembro 21, 2007

Carta a Rosana


Porto Alegre, 22 de dezembro de 1986.


Cara Rosana,


eis-me aqui após tanto tempo, sei nem por que razão. Se ao menos tu tiveres aberto por curiosidade a carta, já me quedo por satisfeito. E, se além disso, tiveres coragem de ler estas palavras, saiba que é através delas que venho te pedir perdão.

Perdão de um homem envergonhado de seu passado. Um homem que abandonou seu lar e seus queridos e fugiu de suas responsabilidades, impulsionado pelo ato egoísta e pueril de buscar sua liberdade além dos limites de onde poderia ser feliz.

Há 40 anos não nos falamos, Rosana, mas saiba que durante todo este tempo, não importando a variedade de experiências que colhi longe de ti, em momento algum esqueci-me do quanto havia falhado. E se a vergonha pelo abandono covardemente me impedia de te olhar novamente nos olhos, ao mesmo tempo a insanidade de seguir adiante me impulsionava neste sonho fingido.

Um sonho fingido que me trouxe outra família, a qual amo incomensuravelmente. Nesta busca, descobri uma nova função, pondo em prática todas as minhas habilidades como artesão, o que me proporcionou a dignidade necessária de manter minha atual família. Mas isso tudo, Rosana, nunca me fez esquecer da família que abandonei. Mesmo porque, o abandono de outrora foi necessário para que esta existisse. E quando me vejo nos álbuns de família, ainda me imagino segurando outro carrinho de bebê. Vejo-me ao teu lado, em nosso simples casamento. Vejo, nessa época de Natal, ajudando a montar outra árvore, noutro lugar. E não posso controlar as lágrimas, diante de tal aflição.

Diante de tanto sofrimento, que, enfim, decidi tentar traduzir nestas letras, rogo-lhe toda tua compaixão, que sempre lhe foi tão inerente. Aprendi ao longo do caminho que a felicidade é um misto de compatibilidade, sorte e oportunidade. Juntos, tivemos pouco de tudo isso. Mas separados, eu tive ainda menos. Minha companhia todos esses anos, além de todos os ingredientes que me proporcionaram a lucidez de, após tanto tempo, lançar-lhe tal redenção, sempre foi a do remorso. Todas as minhas ações traziam no verso as lembranças de meu passado. E teu rosto nele sempre esteve estampado, Rosana. Não me acusando, mas me lembrando dolorasamente de meus erros injustificáveis.

Desta forma, despeço-me, sem em nenhum momento propor-lhe tregüas e chances para que possamos reviver infelicidades. Venho, sinceramente, como um de meus últimos atos nesta vida, enfim claramente render-me à sua hombridade e fortaleza, por ter, ainda em tenra idade, suportado uma vida inteira as dificuldades de ter sido abandonada pelo marido, e, conseqüentemente, ver-se sozinha com dois filhos para criar.

Quanto às crianças, que hoje devem ser grandes pessoas, sempre guardei no peito lembranças carinhosas. São filhos dos quais abdiquei. E se há maior vergonha que um ser humano um dia possa ter antes de deixar este plano, é justamente esta, Rosana. Apesar de pela vida ter acertado em muitos pontos, errei seriamente numa parte essencial dela. E este erro, se não me foi cobrado em vida, deverá certamente me perseguir por todo o sempre.

Portanto, Rosana, perdoe este velho, que não lhe pede nada, além de uma demorada, porém única oportunidade de ter, no mínimo, como lidos seus desabafos.

Espero que eu tenha acertado no endereço.

Um beijo afetuoso daquele que um dia negou-lhe afeto,

mas, hoje, humildemente, vem oferecer seu mais sincero pedido de perdão,


Amaro Inácio de Pontes

terça-feira, dezembro 18, 2007

Breve Particular


Um dia esses fios que a gente arrasta por onde passa se encontrarão e se unirão num nó tão apertado que nossos silêncios trancafiados em todos os traumas serão obrigados a se explicar. Será o dia em que minha barreira emparelhará com a sua, e ambas, encostadas, formarão um obstáculo intransponivel, de onde apenas sairemos após removermos todos os tijolos. E, do nublado desse desentendimento tácito, talvez se faça um laço, diferente do nó traçado pelo acaso. Laço que a gente molda, bonito, escolhido, e só solta quando pedido por um dos dois. E, depois, será o meu com o teu compromisso os improvisos que poderemos encenar. Sejam cenas de um drama, sejam de um romance, o importante mesmo é que se lance, neste instante, o roteiro ainda inacabado, mal-adaptado, de uma história de amor ou de humor a se desenrolar.

quinta-feira, dezembro 13, 2007

Via dupla


Dizem que amor é via dupla
Que ele não tem culpa
Que se sabe quando ele chega
Mesmo que não haja entrega

Que se sente coisas engraçadas
Vontades impensadas
Ficar perto, dependência
Vício da presença.

Pode ser, até parece
que ele seja tudo isso
Mas será que ele permanece
Com o compromisso?

Dizem que o amor é pura culpa
Que ele é fruto de uma dupla
que não sabe quando se entrega
mesmo quando chega
Que as vontades impensadas
passam a não ser engraçadas
quando o vício da presença
gera dependência

Pode ser, até parece
que é mesmo assim complicado
Dizem que o amor enlouquece
em demasiado

Já que dizem, diga-me agora
E quem sente tudo isso só?
Será que já não é hora
de procurar algo melhor?

Pode ser, até parece
que tudo tenha esse contorno
mas será que há mesmo amor


sem retorno?


domingo, dezembro 09, 2007

Sobre a fragilidade


Ele não conseguia dizer a ela o que sentia, como se a relação dos dois houvesse sido acometida de um excesso de racionalidade. Tudo era pensado demais, e pouco se via dos dois que não fossem conversas de pessoas que se gostam, apenas. Está certo que, para ser coerente com o já dito, nenhum dos dois tinha mesmo certeza do que um cultivava genuinamente pelo outro. Era tudo suposição. Era tudo jogo de pensamentos trocados, numa espécie de transmissão de aparência. Num dia, ele superinterpretava o que ela dizia; ela, por outro lado, menosprezava algum detalhe que na mente dele era o ponto mais importante. No dia seguinte, os papéis se invertiam. E assim continuavam na construção de uma relação entre pessoas que se gostam, mas que param por ai, por culpa da completa inércia que os dominava. Ambos não eram assim com outras pessoas; até que eram acostumados a explicitar mais cristalinamente suas emoções. Mas quando era para um a demonstração do outro, tudo se revestia de uma dose cavalar de complicação. Havia entre os dois termos tacitamente proibidos. A cada momento acresciam limites e redomas de proteção, com os quais um não pretendia confundir o outro, mas se preservar dele. Um tinha medo de tentar; o outro, medo de conseguir. Ambos eram desacelerados pela cautela exarcebada, como numa espécie de medo de machucar. Talvez um, pelo trauma da rejeição; o outro, pelo trauma da entrega. Na verdade, ambos são dois apaixonados que amam, mas não sabem o quê. Ou simplesmente não descobriram que amam errado coisas erradas. Mas vivem procurando no outro desculpas e tateamentos para sanar dúvidas, evocando cada vez mais certezas de que aquelas ainda existem. E sempre irão assistir a uma história indefinida, enquanto o implícito, ao invés de um toque de sugestão, der o compasso desse história. No final, quando tudo o que antes era névoa for enfim revelado, talvez ele não veja nela a perfeição amalucada que tanto admira. E talvez ela encontre nele o porto seguro que tanto esperava. Ou o contrário.Talvez ele perceba que esteve certo o tempo todo quanto a seu alvo de admiração. E ela descubra que ele é realmente um querido amigo como imaginara. Muitos "talvez" nisso tudo. E esse, certamente, é o principal problema entre os dois. Quando ambos se permitirem dizer, sem rodeios, suas verdades para o outro, o saldo final seja uma relação, se não mais feliz, ao menos mais corajosa. E, quiçá, mais libertadora. Menos frágil, pois.