quinta-feira, maio 31, 2007

Quem é você?


Somos atores sociais. E muitas vezes confundimos a atuação. O conceito sociológico vem acompanhado de toda uma pompa coletiva e construtivista. Já ao que estou realmente me referindo, a maneira nada espontânea de nos portarmos, a encenação do que devemos ser em determinada situação, o número improvisado como arma para aceitação em grupo social, isto tudo é carregado de uma maquinário avassaladoramente auto-protetor.

Na maioria das vezes não somos nós mesmos. Ou melhor, na grande maioria das vezes nos portamos como nós mesmos achamos que deveríamos nos portar caso não nos importássemos com o que os outros se importarão de nós. Mas nós nos importamos. Não tem jeito. E a confusão, mais do que no modo com que tentei agora há pouco dizer, se avulta de significado à medida que essa facetagem descarada e adaptativa de nos encaixarmos camaleonicamente a cada ambiente passa a confudir nós mesmos: a chamada indentidade duvidosa-perdida-ameaçada entra em cena.

Para não nos degradar ao ponto da picaretagem falsária, digo com veemência que antes de tudo temos uma essência caracterizada pelo que convencionamos chamar simpaticamente de temperamento/ personalidade. Isso é inegável. Ninguém faz reformas interiores por onde quer que passa. Esse traçado interno, o âmago de cada um, é irrepreensivelmente único e determinado. Alguns o conhecem bem, e mesmo assim, aprendem a re-conhecê-lo dia após dia. Outros, coitados, perdem-se nas avaliações e seguem sem rumo, à busca constante da auto-compreensão, mas se perdem na continuidade da batalha.

Dita essa concessão afagadora, a da certeza de que temos um modelo de identidade interior pré-programado, essa espécie de código deontológico pessoal, passemos à criticidade do reconhecimento de nosso descaramento: a relativa espontaneidade presente em nossa atuação como ser humano em sociedade. Para se viver coletivamente, aprendemos a sobrepujar nossos paradigmas, a ceder e relevar certos entendimentos, em detrimento do grupo ao qual estamos inseridos. Isto por si só já ofusca grande parte do que somos, em relação ao modo como nos portamos.

Em segundo lugar, estamos constantemente iniciando novas relações, pondo-nos em contato em situações novas, partindo do zero a cada linha de chegada. Estas apresentações ao recém-chegado não deixam dúvidas de que agimos através de modelos de como se deve agir quando a variável "intimidade" não deixou os atores sociais à vontade o suficiente para deixar transparecer o seu verdadeiro rol de comportamentos ora tolhidos, ora inibidos, ora atenuados, (ou até exagerados, dependendo da situação)pelo simples poder moldador da novidade.

E por fim, e não menos importante, para completar a tríade do que venho tentando expressar nessas linhas, reside a obviedade do fato de que, ao conviver em sociedade, nossos atos são reflexos das atitudes dos que estão à nossa volta. Muito deles certamente são resultados práticos em resposta às atitudes daqueles com quem convivemos. A convivência, o meio, os exemplos e a interação são responsáveis pela padronização da camuflagem grupal. E, além disso, agimos conforme a música, em diálogos constantes com o mundo à nossa volta, e nos portamos na grande maioria das vezes de maneira diferente quando sozinhos, comparado a quando estamos acompanhados.

Na verdade, somos o resultado do (des) equilíbrio estabelecido entre o que interiormente somos e como externamente agimos. O resultado desse cálculo é a incógnita perseguida por esse raciocínio. Definimo-nos pela junção do abstrato de nosso caráter à materialidade de como nos comportamos em coletividade. O grande problema é que na imensa maioria das vezes deixamos a figura social criada por nós dominar aquilo que nossa individualidade primeirante ensinou. O ideal deve ser buscar o limite maduro entre nosso recheio e nossa casca, para que nem nosso roteiro interior seja infringido, nem a atuação da cena mais adiante perca em espontaneidade e talento. O reconhecimento nesta vida reside no fato de deixarmos marcado, em tudo que está à nossa volta,o mais perfeito reflexo daquilo que cultivamos dentro de nós, não obstante às tantas variáveis que relutam em nos impedir de atuar de forma genuína. Diante dessa compreensão, quem sabe estaremos um dia aptos a responder à simples pergunta do título, sem que tenhamos que involuntariamente agir como deveríamos, em detrimento de como agiríamos sem nada dever. Eis uma grande questão, uma interessante dúvida: eis um grande exercicio.

quinta-feira, maio 24, 2007

Baixio das Bestas


Eis uma história crua, que muito depende do quanto desnudados estão dispostos seus executores. Mais do que artistas nus, vemos neste filme de Cláudio Assis uma Zona da Mata despida: pobre, esquecida, abandonada.

Os personagens retratados neste filme são o reflexo do abandono e o da marginalidade a que foram submetidas muitas das cidades interioranas de nosso Nordeste. Muito me fez lembrar - totalmente pelo seu sentimento de escanteio, nunca pelo seu modo se descrever - a cidade esquecida do filme "A Máquina",de João Falcão, da qual seus moradores evadiam-se por conta da falta de recursos.

A falta de recursos da cidade focada em "Baixio das Bestas" é exemplificada pela ausência de oportunidades e mostrada como um palco para o desfile de figuras animalescas, que, muito por conta da marginalidade, são mostrados em tons naturalistas, que remetem à irracionalidade humana. Os personagens aproximam-se dos animais em seus métodos, embora cultivem a maldade de comportamento digna de uma maléfico ser humano. E muitas vezes agem com uma maldade exasperadamente pueril, como a de uma criança que decepa friamente um inseto, por exemplo.

Trata-se de um excelente trabalho de Dira Paes, Matheus Nacthtergaile, Caio Blat e a estreante Mariah Teixeira, que conseguem, cada um à sua "baixeza" de existir, transmitir antipatia, asco, raiva e pena, respectivamente. Através de seus personagens, pode-se ver a absurda falta de contidão e modos de uma prostituta de "segundo escalão"; a loucura e o sadismo existentes num homem cuja instrução volta-se ao gosto pela maldade; a preguiça personificada na malandragem inescrupulosa de um jovem imaturo e inconseqüente; a perda da inocência em virtude da constante humilhação e conformação inevitável. Além de seus personagens principais, o filme conta com um elenco desconhecido, porém não menos brilhante, que age com tal naturalidade diante da câmera, que nos faz pensar se são mesmo atores exercendo seu trabalho, a exemplo da cena entre o bêbado cavador de fossa e o patriarca explorador da sexualidade infantil, ambos interpretados brilhantemente por Irandhir Santos e Fernando Teixeira.

"Baixio das Bestas" é uma história sádica e deprimente por natureza, e que ganha contornos de ótima composição em virtude justamente da crueldade de suas exposições secas e desveladas. Planos de cima, bem como por trás dos personagens, além de no meio de um grupo de maracatu em plena atividade não nos deixam em dúvida de que somos mesmo espectadores. Desde o inicío da projeção fica clara a intenção de exposição de uma realidade com a qual não nos identificamos e que, apesar de próxima e triste demais para ser verdade, é verossímil.

Eis a principal contribuição do filme: um Nordeste da Zona da Mata desnudado de retratações caricaturais, desmascarado em suas verdades mais trágicas. Dentre elas, a de que nasce um animal dentro de cada homem esquecido pela própria Humanidade.

sexta-feira, maio 18, 2007

Coesão particular




Sem mais porquês
Um sim, talvez
Como?
No meu homo-sapiens pensar,questiono.
Quando? Será que vai?
Quanto? Será penar?
Quedê o meu lugar?
Já fui embora
em inúmeros outroras.
Aonde foram meus 'ondes'?
Quantos destes podem
dizer-me o quanto do meu quantum?
Enfrento o sentido da falta de sentido
perdido de meus conteúdos.
Entretanto, aqui no meu canto,
Apesar de contudo, ainda sou portanto.

quarta-feira, maio 16, 2007

We are the Earth Intruders


Não consigo viver sem música. Sem cinema também. São duas paixões que caminham juntas e que me transformam num ser dependente. Não há sentido na minha vida, sem que estas duas formas de expressão artística estejam presentes. E, como toda pessoa ansiosa e ávida pelo consumo do que gosta, a simples existência deles não me basta. Necessito sempre de novidades, de reinvenções, de novos sons, de novos planos, de novos ritmos, de novas lágrimas.
Sou sedento pela novidade. Como se um som novo me fizesse repetir as experiências de uma primeira vez, busco sempre estar atualizado com tudo que há de vir desses dois campos imprescindíveis. Não sou daqueles que se fecha ante às novidades, para exaurir ao máximo o que já se tornou passado. Eu escuto a mesma música mil vezes, se ela mexer comigo, mas não deixo de, nos intervalos, buscar novas músicas que me façam experimentar novas sensações. Admiro e amo os clássicos do cinema, mas estou sempre à espera de uma inventividade, seja na forma de contar um roteiro, seja na forma de posicionar uma câmera, seja na linguagem que tal filme utiliza.
Valorizo por demais a originalidade dos jovens artistas que servem como um receptáculo da reciclagem do que marcou época, acrescendo características próprias dos tempos modernos. É como reviver o passado, sem que seja considerado antiquado. É como re-experimentar velhos momentos com cara de novos. É como se sua (seu) esposa (o) tão amada (o), mas já sacrificada (o) pelos efeitos do tempo, reaparecesse certa noite com a pele menos ressecada, com a carne mais firme e cheiro de nova flor. Funcionam dessa forma novas estrelas, como Amy Winehouse, Lilly Allen, Artic Monkeys, Mystery Jets, Muse, entre muitos outros. Dentre os astros da telona, ressalta-se a inventividade de Charlie kaufman, Michel Gondry, Shyamalan, David Fincher, do Mestre Tarantino, Chan Wook Park, Alejandro Gonzalez Iñarritú, Darren Aronofsky!!
Mas um ponto especial a esse raciocínio deve ser direcionado àqueles artistas que dão um passo à frente. Àqueles que bebem de fontes passadas, mas fazem brotar de seus chafarizes novas cores, novos sons, novas sensações. Estes não são apenas reinvenções bem-vindas: são inventores. Ditam moda, seguem sempre no começo da fila, quebram antigos padrões, criam novos. Nos anos 60, BEATLES. Na década seguinte, a disco music deu o seu recado. Nos anos 80, Michael Jackson e Madonna ditaram as regras. Esta última perdeu em originalidade, mas continua por méritos espirituais inexplicáveis, à frente de todo e qualquer processo musical. MJ não merece comentários. Nos anos 90, não me vem à mente nenhum grande nome que funcione com divisor de águas, mas foi nela que basicamente se originou, cresceu e sedimentou-se, passando a perdurar pela virada do século, demonstrando que ela é o futuro, a melhor contribuição islandesa à humanidade. Ela se chama Björk.
Dona de um timbre de voz nunca antes ouvido neste Planeta, e de uma forma de utilizá-lo completamente original e inusitada, Björk é muito mais do que uma artista de vanguarda. Ela é o que há de novo. Tudo que ela realiza leva o toque de um gênio, refletido em sua inventividade e capacidade de renovar-se. Ouvindo sua discografia, é possível perceber a Obra de uma artista incompleta por natureza, intraduzível, inexplicável. É capaz de tornar sons guturais em obra-prima e de emocionar milhões com sua Selma, de "Dançando no Escuro" (sua bem-sucedida e marcante passagem pelo Cinema, sob a marca do também grande cineasta dinamarquês Lars Von Trier). O novo cume desta carreira brilhante reside em seu mais novo trabalho: “Volta”. Mais um disco excepcional, sonoramente lapidado de um modo a unir o que há de mais íntimo e exposto em cada um de nós. Sua voz inigualável embeleza as melodias, ora intimistas, ora ritmadas, ao som de batuques tribais, de um clima oriental, de um lirismo digno dos grandes musicais, de uma verdade escancarada. Uma miscelânea de sensações, de momentos, de sentimentos perpassam qualquer que seja aquele que aguce seus ouvidos a esta beleza que é “Volta”. E é uma viagem sem volta.
Portanto, artistas como esta jóia da “Terra do fogo e do gelo” ratificam em mim a certeza de que estarei sempre bem servido no meu desejo de experimentar o novo. Seja reinventado, seja realmente novidade. E me emociona perceber que são capazes de tocar em algo além de impressões em nossos tímpanos, mas em sentimentos recônditos, em necessidades de consumir com minhas emoções a qualidade artística que deles brotam. Por isso gosto tanto de Música e Cinema, pois ambos são terrenos férteis ao que mais aprecio na arte de apreciar Arte: a intenção de (re)fazer Arte.


Vai um conselho?


Saber escutar o que aqueles que você ama têm a dizer é um dos melhores remédios para as almas mais amarguradas. Quando se cultiva algum problema, um dos melhores remédios podadores desse mal é um bom conselho daqueles que o querem bem. Muitas das vezes, a força de um conselho não reside apenas na mensagem que ele passa. Mas da combinação 'pessoa que fornece + intenção com que diz + resultado a que se chega". Algumas vezes a mensagem pode ser dura demais, pode não ser o que se queira escutar, mas diante dessa tríade poderosa da boa e eficiente intenção, nenhum desejo pueril é mais valente.

Do mesmo modo que um dia aprendi que 'o que se diz pode ser enternecido pelo modo com que se diz' - fruto de uma sábia pessoa que me se serve de exemplo e admiração profunda -, também aprendi que isso que se diz deve muito de sua finalidade ao quanto o outro está disposto a ouvir. E a deixar-se convencer. Portanto, não há verdade acalentada pela meiguice e modos de dizer que surtam efeito nos maus-ouvintes. Embora a meiguice dos que sabem dizer algo com carinho seja por deveras necessária àqueles, digamos, domesticados para a arte da audição controlada, às vezes do que se precisa seja da verdade nua e crua, para os surdos por escolha.

Daqui por diante, aguçarei mais meus sentidos, mais do que me policio fazer. Valorizarei mais as intenções dos conselhos que me dão, mais ainda do que os próprios conselhos. E tentarei apreender lições não simplesmente da mensagem, não somente dos efeitos causados por tal conversa: mas também do que significa para aquela pessoa dizer-me aquilo que ela acredita ser bom pra mim. Talvez ela esteja superando regras impostas a ela própria... talvez seja um recente aprendizado que ela deseje dividir comigo...talvez seja a simples e terna vontade de me ver mais feliz.

E isso me está sendo mais do que suficiente. Melhor do que superar traumas é saber que se está bem servido não apenas de bons conselhos, mas de excelentes conselheiros.

terça-feira, maio 15, 2007

Fossem lágrimas, seriam chorume


Lixo. Esgoto. Carniça. Putrefação. Dejeto. Ceborréia. Suór de vaca prenha de bezerro mutante. Fedor de hálito de anciã sem dentes presa pelos parentes dentro da lata de lixo do banheiro da empregada trancada por dentro. Catarro. Excreção. Viscosidade da última gota de corisa escorrida pelo pescoço. Lambida na sola do pé de um grupo de soldados sebosos vindo da batalha do Iraque. Mergulho em toda a pasta expelida por todos os cravos do mundo espremidos ao mesmo tempo. Nojo. Regurgitação. Vômito das próprias vísceras acompanhado de um platelminto bígamo. Golfada de macaco velho. Defecação. Embebido de urina de camelo raquítico no deserto do Saara. Excremento.


Nojeira travestida de um sentimento baixo por si próprio.

O cúmulo da baixa auto-estima representado pelo curioso ato de sentir-se na merda.

Fossem palavras ditas, sentirias o cheiro ocre do fracasso.

Fossem lágrimas, seriam chorume.



sábado, maio 12, 2007

Prazer, chamo-me dúvida


OLá, prazer em conhecê-lo! Aliás, prazer em revê-lo. Quer dizer, prazer em estar sempre por perto. Ou melhor, ahhh você já sabe!Gosto do jeito que me percebo em seus olhos, quando você, sem saída, me chama entre as várias opções que a vida te propõe. Caso eu não existisse, você facilmente optaria por alguma delas, talvez a certa, talvez a errada, talvez... Se eu não fosse tão presente nas suas escolhas, você pouparia menos preocupações na hora da opção, mas certamente sua margem de erro aumentaria consideravelmente. Mas, pela minha simples presença, a minha gostosa companhia que te faz refletir sobre suas decisões, eu mexo com seu pensamento. Bagunço suas necessidades maiores, avivo a sua razão, sua emoção, com seus hemisférios todos. Eu marco encontros de você mesmo com seus próprios mistérios, te faço enxergar coisas que há tempos você não percebia. Eu te faço repensar e repensar sobre o que já repensou. E na hora de ir embora, vou satisfeita, deixando-o com os pesos da balança na medida certa. Prós, contras, benefícos, prejuízos. Refestelo-me com todos esses elementos farfalhando no carnaval de suas maquinações! Te deixo no ponto com a necessidade de se decidir. Após a dúvida, vem a dívida. Salde-a, para que não seja tarde demais.

sexta-feira, maio 11, 2007

A Liberdade de dizer


Minha bandeira tem cor do tempo
O tom que escolhi
Nesse momento
Perdi

Nela pincei toda metade do passado
O que não vivi
De errado
Escondi

Independente do auto-colonizador
Finquei meu símbolo
Fugi da dor
De ídolo

Revoguei os dogmas da minha prisão
Liberdade: um embaraço
De uma fraco coração
Sem marca-passo

Trotes da tragédia da persuasão divina
Louca obsessão de letras publicadas
Teorias urgentes de esquina
desajustadas

Refém do silenciador invencível
Poder de quem é o comando
Momento irreversível
Dominando

Fruto da genética psicológica da submissão
Atrapalho do balançar de uma bandeira
Destremulada por minha fraqueza
Por mais que eu queira

Inutilidade disseminar um discurso burocrático
Se quem me detém é a coleira do sistema
Só não queria ser estático
Não é meu esquema

E embora minha luta seja menos do que puder
Embora fraca ante à Guerra do Poder
Devo ser mais do que quiser
Devo ser

Persistir na indesistibilidade (des)conquistada
Provocar a algema fortalecida
Uma história mal-contada
Re-Vivida


(por uma voz solta

no eco incerto de uma

esperança absorta

pelo "correto")


Sem saber
Sem desistir
A liberdade de dizer
A liberdade de existir.

terça-feira, maio 08, 2007

O dom inato do destaque


Alguns possuem o dom inato do destaque. Certas pessoas possuem a qualidade incomparável de chamar a atenção sem esforços, de magnetizar olhares. Dia desses, fui magnetizado por um desses seres de super-poderes.
Atribuo a Ciça (?) a melhor reflexão do meu dia. Do encontro num simples ponto de ônibus à triste despedida num outro ponto de destino, Ciça (?) conquistou toda a minha atenção e simpatia. E meu respeito. Tratava-se de alguém simples, com capacidade elevada de comunicação. Transformou a espera do ônibus demorado num prazer. Fez do ônibus lotado, uma aventura.

A cada minuto, Ciça (?) trocava um idéia com um, chamava a atenção de outro. Um talento inigualável de se fazer conhecer. Eu desempenhava o papel de seu camarada principal na viagem. Embora se dirigisse a todos que estavam por perto, era a mim, seu colega de espera e viagem, a que ela parecia recorrer em busca de um olhar comprensivo. Quando, sem querer, esbarrei nela, por conta de uma freada brusca do motorista, Ciça (?) olhou de rabo de olho, soltando um "Ok, Ok", que significava uma compreensão de alguém já acostumada com os solavancos de ônibus. Mas não foi a simples compreensão oriunda de suas experiências como passageira de coletivos que chamara mais a atenção, mas sim o modo com que ela se dirigia a mim. Como se já me conhecesse. Como se soubesse exatamente que eu a entenderia. Como se amigos fôssemos.

Ciça (?) pertence ao seleto grupo dos que possuem o anseio de comentar tudo que se passa ao seu redor. São pessoas iluminadas pela maneira de conviver pautada pelo exercício da simpatia e da gentileza, pela necessidade das respostas humanas a tudo que a ronda. Sem o outro, não há Ciça (?); não há Ciça (?) sem companhia. E é através desse apego ao vizinho que ela desliza pela passarela da vida, conquistando afetos, distribuindo alegria, alegrando os mais tristes dias de quem quer que esteja triste.

Após incontáveis gracejos, desferidos tanto aos passageiros do ônibus, quanto aos pedestres nas ruas, descemos na mesma parada. Eu estava a caminho de uma diversão. Ela, ao trabalho. E ambos tínhamos a mesma empolgação, pois a vida, para pessoas como Ciça (?), é uma grande diversão. Viver próximo a alguém assim deve ser um riso constante, deve ser engrandecedor, um aprendizado diário.

Ao lado de Ciça (?), qualquer um é coadjuvante. Naqueles poucos momentos, ela foi a artista principal, e assim deve ser em todas as peças da vida. Ao descermos do ônibus, dirigíamo-nos ao mesmo local, porém em situações diferentes. Eu, a caminho do lazer. Ela, a caminho de seu ofício. E ambos demonstrávamos bastante alegria!! Mas a minha era engrandecida pela companhia dela.

Ao descermos, nossa despedida foi antecipada. Assim que pusemos nossos pés para fora do ônibus, uma senhora que trabalhava numa lanchonete próxima a chamou, pelo nome que me pareceu ser Ciça (?). E ela prontamente respondeu, com seu sorriso sincero e mãos ao alto, em sinal de consideração.Tinha intenção apenas de cumprimentar e de continuar seu caminho ao meu lado, porém a amiga insistiu que ela ficasse. E Ciça (?), relutante, porém em seu natural desejo de agradar, se despediu de mim com olhar de quem queria ficar por mais tempo, dando-me a mão como um adeus e um sorriso de agradecimento pela companhia.

Espero que ela tenha sentido que o mais agradecido por aqueles momentos era eu. Um pouco triste por ter me afastado dela, percebi que nossa despedida não poderia ter sido de outra maneira, pois pessoas como Ciça (?) nunca saberão agradar a apenas um: vieram nesta vida para agradar a um mundo inteiro.

Quem dera um dia ela pudesse ler estas palavras... Mas contento-me com o fato da inevitabilidade da justiça nessa vida. Gente como Ciça (?) certamente obterá o retorno merecido pelos seus préstimos com exemplar de ser humano. Quem sabe alguém possa dar a ela - ou já tenha dado- o mesmo carinho que me motivou a escrever este texto, exatamente igual ao carinho que ela distribui aonde quer que passe.

Ciça (?) me fez ter certeza de que nosso descrédito pode ser amenizado pela esperança da existência de pessoas puramente boas. É quando justamente pensamos em desistir de ajudar o mundo, que ele nos mostra que possui, sim, ferramentas para esta tarefa. E pessoas como Ciça (?) podem não ter este objetivo, esta meta, mas contribuem inconscientemente para um fim coletivo, apenas por existir individualmente.
Parabéns a Ciça (?), simplesmente por existir e obrigado por cooperar a imbutir na minha existência a alegria de que pessoas como ela são uma realidade, daquelas que realmente fazem diferença.