quinta-feira, junho 05, 2008

Pra sempre


Tiro a areia das sandálias de couro que você me deu.

Meio sal, meio saudade dos tempos em que nossa casa era de luz.

Fotos ao chão, jogadas, quase escondidas debaixo dos móveis em que nos amamos

A observar, envergonhadas, todo o desejo que desmoronou.

Nelas, sou eu, é você, de algum jeito que a gente nem lembra mais

Nelas, não sou mais eu, não é mais você, desse outro jeito que a gente nem quer entender.

Era tudo tão feliz quando eu pensava num sorriso

Era tudo tão cardíaco, tão pulsado, tão detalhadamente imaginado...

Hoje é expressão sem expressão, fechada em pergunta,

um coração cansado, um pulso fraco, uma lembrança

quase esquecida de se ter.

É incrível como as melhores coisas de um tempo

nunca permanecem muito tempo.

Logo são substituídas por novos momentos

novos melhores momentos,

novas fotos que sobre os mesmos móveis

oniscientes e traidores móveis

se alçam, diferentes e imóveis, nos novos porta-retratos

a admirar outros personagens que se enveredam

em novos amores,

na ilusão do que tem de ser, de novo,


pra sempre.

quarta-feira, junho 04, 2008

O abismo


Eu subo a calçada

pensando em nada

só na última palavra

soletrada

pela sua despedida.


Desço a rua

até o fim da impressão

de que entendo errado

qualquer lado

de qualquer questão.


Na cabeça o eco

do que você diz

e não entendo.

Tudo implica no erro

do que faço

porque não compreendo.


Será bendita essa distância
entre o que ouço e interpreto?
Será maldita essa lança
que jogo pra te ter por perto?


Não sei de nada do que acho

Só sei daquilo que eu sinto.

Sei que aquele descendo a rua lá embaixo
Sou eu fingindo.

E aquele na calçada, do outro lado,

sou eu sorrindo.
* Imagem por Lucio Lobo Junior

segunda-feira, junho 02, 2008

Toda alma é meio gente


Toda alma é meio besta, meio tapada, natural. Toda ela é boçal, medrosa das perdas e saudosa dos ganhos que ainda não teve. Toda alma é quase tudo, pois cada dono possui um absurdo e vasto mundo fervendo na panela. É retrato do retrato do mosaico mais elaborado, como gente dividida e junta tudo reunida. Toda alma é meio lençol de cama quando ficam as marcas de quem ama. Toda ela é meio susto da verdade de existir, é meio medo do escuro de esconder. É meio revelação dos desejos mais criminosos, libidinosos e nossos. Toda alma é meio careta, um tanto quanto afeita à resistência de tudo que vem de novo. Toda ela é meio pra cima, quase pro meio, um tanto pra baixo, a julgar o humor. Dependendo do amor. Do que dói. Ou do que destrói, sem licença, sem desculpa, e sem ‘por favor’. Toda alma é toda etérea, meio fumaça, quase eterna, um tanto desgraça. Uma parte é do mundo de lá, outra do de cá, as duas dos dois e nenhuma sofre à toa. Nem todas boas, algumas más, todas erram, outras acertam, várias delas consertam. Nenhuma fica pra trás, todas vão adiante; toda ela é tão errante quanto o corpo que as abriga. Toda alma é suja de alguma mancha que ficou, e quase nenhuma não leva no dorso mágoa ou rancor. Toda alma é paciente, seja no sul ou ocidente, seja no norte ou oriente, qualquer lugar pra que se aponte. É tudo igual e diferente, tanto de lado, quanto ao avesso ou de frente.

Toda alma é meio gente brincando de ser inconseqüente.


* imagem por João Lobo

Rastro


Não foi à toa
nem enquanto.

Foi portanto
que tudo que é canto
desse meu pranto
de felicidade
ecoa nessa cidade

a inundar de alegria
esses caminhos quase secos de todo dia.