quarta-feira, novembro 22, 2006

A motorista e a passageira


Hoje fui da alegria à tristeza em menos de meia hora. Ou melhor, fui do orgulho à decepção em questão de minutos. Contarei: como sempre, apanhei um ônibus para a Faculdade e, qual foi a minha surpresa, que o motorista do coletivo era A motorista. Tudo bem que isso já não é muito lá novidade para muita gente, mas era para mim. Apesar de passar horas importantes da minha vida em ônibus, nunca havia pego algum dirigido por uma mulher. Pois bem. Este simples fato muito me deixou feliz, pois, apesar de ser homem, não sou machista ao ponto de não me alegrar ao ver uma mulher em posição majoritariamente masculina. Na verdade, fico feliz de poder presenciar quaisquer derrubada de barreiras sociais, quaisquer quebra de paradigmas e impossibilidades, apenas cultivadas por herança de tempos mais injustos. Me senti orgulhoso por ela, por entender o significado da posição que ocupava. Era mais do que uma motorista, tão cheia de responsabilidades e com tão pouco reconhecimento. Uma mulher no volante de um coletivo é um símbolo de tempos melhores, de uma sociedade mais justa e menos preconceituosa. E, entendendo qualquer dificuldade que ela pudesse enfrentar, era notório que aquela motorista realizava uma de suas primeiras viagens. Ou seja, ela ainda estava numa espécie de treinamento. Neste período, é extremamente normal que, seja homem ou mulher, a adaptação àquela posição ocorra paulatinamente. Assim, ela estancou o ônibus duas vezes no percurso, além de manter uma velocidade não tão costumeiramente alta, e ainda lhe era soprado o caminho pelo cobrador. Na minha visão orgulhosa (no bom sentido), perfeitamente compreensível. Minha satisfação por estar sendo guiado pelas mãos dela era tanta, que ela poderia me atrasar mais meia hora, e mesmo assim eu não ligaria. Aquela mulher não merecia de forma alguma minha irritação, mas nada menos que meus parabéns. Encaminhava-se a história para um final feliz, pelo qual eu sairia refletindo sobre como nossa realidade atual talvez seja mais fácil de viver em alguns poucos aspectos, eis que me deparo com os comentários de certa passageira. Isso mesmo, passageira. Prestes a descer, já à frente da porta de saída, fui testemunha de uma das mais completas faltas de sensibilidade e consciência que já vi alguém emitir. Uma mulher que conversava num dos assentos traseiros com dois homens, falava incessantemente em tom de reclamação, as seguintes asneiras (tentarei reproduzir com o máximo de fidelidade): "Se eu soubesse que ela (a motorista, obviamente) tava aprendendo, eu não tinha nem entrado", disse a mulher, em alto tom e dirigindo-se à frente do ônibus. E prosseguiu: "É por isso que os homens falam das mulheres. Porquem sempre têm essas antas para atrapalhar a vida dos outros." Diante da gravidade desta declaração injusta e inconcebível, contrastante por demais aos meus sentimentos no momento, resolvi retrucar a ignorância dela, diante de todos que estavam próximos, algo que realmente não costumo fazer. Disse a ela que era completamente compreensível que, como uma aprendiz, a motorista enfrentasse dificuldades. E que o melhor lugar para um motorista aprender a dirigir no trânsito era justamente no trânsito. Acrescentei dizendo que, caso não fossem dadas oportunidades como esta, uma mulher nunca poderia chegar a tal posição, e continuaríamos com uma sociedade tão injusta por muito mais tempo. Gostaria de ter acrescentado que ela, como mulher, deveria se sentir orgulhosa por ver seu gênero, tão historicamente castigado, ser capaz de mostrar à sociedade suas capacidades de eqüidade com o masculino. Porém, minha parada já se anunciava e não pude completar minha sincera e afoita lição de moral. Com a minha resposta, meu ânimo me impediu de perceber a reação dos demais passageiros, porém o meu alvo ensaiou uma espécie de reflexão confusa que talvez seja impedida de se desenvolver justamente pelo tanto de ignorância que nela deve haver. Mas me senti de tarefa cumprida. Nesta curta viagem de ônibus aprendi que 20 minutos são mais que suficientes para ir do otimismo ao pessimismo. Otimismo, por poder ter o privilégio de presenciar tais exemplos de dignidade e coragem (por parte da motorista). Pessimismo, por verificar que a ignorância é um dos maiores obstáculos sociais que temos. Por isso me senti tão assim no dia de hoje. Tão orgulhoso, e tão decepcionado...

Primeiro Ato


Abro alas neste espaço para uma reflexão um tanto quanto pessoal sobre um assunto que a mim me agrada analisar: a natureza humana. Logicamente, este é um assunto capaz de render mais do que meros textos publicados. Nem uma biblioteca repleta de volumes minuciosamente elaborados para transmitir algo equivalente à miscelânea de cores do que vem a ser natureza humana é capaz de atingir tal objetivo. É humanamente impossível um ser humano chegar a tais e tantos detalhes elucidativos. Assim sendo, restringirei-me a focar numa das imperfeições que constróem este quadro surrealista que formamos. Falarei do erro. Para muitos, algo inevitável. Para outros, inerente. Muitos ainda dizem ser um degrau para certa evolução. Porém, mais do que tentar definir tal realidade, mais do que tentar estudar a influência que um erro pode causar em nossas vidas, e de que forma tal erro ajuda a compor a imagem do que somos ou do que parecemos ser, convém lembrar que estamos a falar de algo extremamente subjetivo. Trata-se de algo misturado a valores pré-determinados. Mas, diante do que a moral implícita em nossa sociedade nos ensina, é possível chegar-se a consensos sobre o que é um erro. Nada impede que surjam divergências interpretativas a respeito, mas pode-se, diante de um julgamento de valor coletivo, dizer o que é certo para esta coletividade. E o que é errado. Nem tudo que é errado é proibido. Mas todo erro é mal-quisto. Muitas vezes o erro proporciona o aprendizado necessário para um fim de correição. Mas em grande parte das vezes, e é esse tipo de atitude que venho especificamente falar, um erro pode ser irremediável a tal ponto, que relacionam-se os motivos pelos quais tal falha foi cometida à ausência de providencial talento de acertar. Pois bem. Um erro mecânico reflete-se na possibilidade de repetir outro movimento em busca da perfeição. Um erro estilístico propicia uma maior meticulosidade e clareza na forma de se comunicar. Um erro estatístico pode provocar uma certa confusão sobre a verdadeira situação de tal grandeza, mas um refazimento de cálculos muitas vezes mostra novas fórmulas matemáticas. Já um erro de atitude é também vexatório para o ser errante, mas não ao ponto de impedí-lo de agir de forma mais acertada no futuro. Logo, igualmente remediável. Talvez o único erro que não possua conserto é aquele proveniente de uma falha oriunda de uma realidade já distante. Certamente não há remédios para os erros de caráter. Afinal, os maus valores pessoais de alguém são adquiridos através do acúmulo de experiências aliado à gênese do temperamento deste. E esses se arraigam de tal forma, que são indesvinculáveis do ser que erra ao externá-los. Portanto, um erro de caráter é reflexo de alguém provavelmente inescrupuloso, ardil e inacabado. Tendo em vista esta análise, os mais desavisados muito costumam confundir os dois últimos erros citados. Erros de atitude e erros de caráter. Quase todos os erros de caráter manifestam-se através de erros de atitudes. Porém, nem todos os erros de atitudes vêm a ser erros de caráter. Mesmo assim, a natureza humana, generalizatória como se mostra, teima em macular certas atitudes isoladas como fossos de caráter e reputação. Exigir tal discernimento do alvo do erro talvez seja até um pouco demais, porém aqueles que se encontram em posição imparcial ao feito deveriam aprender melhor a dissociar atos falhos de má-natureza. Assim sendo, por mais que a natureza humana se revele mais profunda a cada desvendar, devemos seguir a creditar nossos maiores acertos na reflexão do que somos capazes, tentando sempre antever as reais conseqüências de nossos atos, mensurando o quanto somos capazes de se importar e meditando acerca das necessidades que possuímos de se consertar. Sempre chego à conclusão de que a conscientização de nossas características mais latentes é o primeiro passo para nos entendermos melhor, tanto a si próprios, quanto uns aos outros. E esse entendimento se perfaz em meio a percalços tais, que a hipótese de erros de atitude perde em importância para a consciência de que estes podem jamais arranhar a nobreza de alguém que exercite seu papel. Por mais que este papel de desenrole através de atos falhos, na verdade ele sempre busca o reconhecimento da platéia para a qual se exibe. Por mais que o drama que desenvolva ofusque a possibilidade do público rir no final, este papel é um mero fantoche diante do que somos e do que somos capazes. A grande questão reside no quanto a distância entre estas duas grandezas pode influenciar na peça inteira. À medida em que se limita a capacidade à natureza do "ser", reduz-se tais confusões. Contudo, muitas vezes ela escapa aos limites, aventurando-se no que simplificadamente chamamos de erros de atitude. E novamente mostramos nossa verdadeira essência indecifrável, nossa natureza nada menos que inexplicável.

quarta-feira, novembro 08, 2006

Desistência


Com desdém, saiu do carro, desceu as escadas, em direção à portaria, não cumprimentou o porteiro e nem sequer ouviu os gritos do homem. Foi em direção ao elevador, clicou no sétimo andar e nem percebeu quando ele telefonara, denunciando-a. Já não importava se a imprevisibilidade a ajudaria ou não. O que importava nesse momento era a vontade de saciar sua curiosidade. Chegando no andar, aberta a porta do elevador, corredor escuro à frente. A cada passo, uma nova luz se acendia, acionada pelos seus movimentos. Ao chegar à porta, silêncio total. Respiração acelerada, batimentos quase que guturais, vilosidades involuntariamente incômodas. Arruma os cabelos. Primeiro toque. Segunto toque. Chaves. Olho mágico. Porta aberta, devagar...Adentra. Do outro lado, um fantasma segurando a maçaneta. Franja por cima da testa, olheiras de duas noites em claro, cigarros jogados na mesa do centro, aquele cheiro ocre que fica quando não se toma banho. À frente da porta, sentia o ódio remoer suas vontades de dizer todas suas verdades. Ao passar por ela, e se deparar com um adversário tão inofensivo, desabou todas suas armas ao chão. Quebraram-se todas as suas defesas e deixou escapar todos os seus ataques. Só sentiu angústia e pena e amor por aquele que agora colocava embaixo do chuveiro, enquanto incessantemente tocava ao fundo o interfone. No momento em que limpava aquele corpo, pensava unicamente em como limparia aquela alma. Sem que triscasse gota alguma na sua, que custara tanto a clarear. O resto da noite passou ao seu lado, passando os dedos em seus cachos e torcendo para que a manhã do dia seguinte fosse menos turbulenta. E tivesse mais respostas, do que as dúvidas que estavam por vir. Naquela noite, acendeu um cigarro, depois de meses de abstinência. E enfraqueceu diante de dois vícios: o do fumo e o do amor.

terça-feira, novembro 07, 2006

Atrás da cortina de fumaça


Quando a gente faz fumaça, tudo embaça. Com aflição, o fogo ameaça se espalhar pelos outros cômodos, você se desespera por alguns segundos, imagina por poucos e curtos e longos momentos sua face desmanchando em pele e carvão. Mas nada se queima além do que se quer queimar. Aos poucos, as cinzas flutuantes se descolam das lentes dos óculos, as tosses mais fortes expelem qualquer resto de fuligem que tenha se enxerido pelas vias respiratórias. Paulatinamente, a vista desembaça, o cabelo se (des) arruma em pó. Restam os dedos negros cheirando a papel queimado e tudo que se quer é um banho de água fria. Enfim, a poeira desanuvia, e a gente passa a enxergar um mundo novo. Um mundo coberto de fuligem velha precisa ser olhado através de um olhar diferente. Um espaço diferente requer um maneira diferente de tratamento. Não se pisa num chão branco de limpo do mesmo modo que um chão podre de sujo. E é assim que os dias me vêm sendo apresentados. De forma diferente. O que era antes claro, hoje me põe dúvidas. E o que anteriormente eu desconhecia, hoje já nem consigo discordar da existência. Graças às fogueiras acesas. E às chamas luminosas, que causaram novas formas de olhar. Novos olhares. Muita poeira pra limpar, mas novos olhares.