sábado, dezembro 27, 2008

A lição


Ao transformar toda a alegria forjada em depressão garantida, você abriu as cortinas de minha ignorância emotiva. Ao me ensinar a amar, você me ensinou a sofrer. E se te culpo por ter me dado esta lição é porque ainda não aprendi a ser adulto. No fundo, ainda sou aquele menino que acusa sem pensar, pede com pesar e pesa sem medir. Apesar de tudo, eu só queria crescer.



sexta-feira, dezembro 26, 2008

Não diga...


A propósito,
não foi num dia assim,
numa hora dessa,
sob uma lua como aquela,
que você disse que aqui estaria?

Combinemos.

Nunca diga mais nada.

segunda-feira, dezembro 01, 2008

O caso


Sim, seriamente

Prefiro, em mim, ti

mas eu vivo sorrindo.







sexta-feira, novembro 28, 2008

É o que marca











Comprei minha calça levi's
pra você me notar

usei o rayban na gola

só pra me amostrar

e enfeitar minha propaganda

de uma vida mansa
cheia de banda

de rock

pra rolar


Nada do gentleman

no meu perfume

te causar ciúme

nem o prada do meu cinto

ou nike dos meus shoes

nem mesmo os shox
sinto

de você


Minha camisa da osklen

a mochila adidas

nem fizeram vitrine

você nem
quis ver...


Apesar de tanto coração
Só vi nas pegadas de seus pés descalços

os passos de uma escolha errada

apontando proutra direção.

quarta-feira, novembro 12, 2008

Imperativo negativo


Vá arrumar o que perder
Vá largar pra não ter
Vá sofrer pra colar
Vá dormir pra acordar

Vá torcer pra não ver
Vá lembrar de esquecer
Vá querer sem se dar
Vá afrouxar pra não doer

Vá chorar pra não sorrir
Vá mentir pra demorar
Vá enrolar pra não seguir
Vá cair pra lá ficar

Vá aquém
Vá também
Vá,

e ninguém
te dirá
meu bem.

quarta-feira, novembro 05, 2008

Tempo de adiar



Já era tempo dessa espera acabar.



Espera o tempo, empurra o vento



sabe do momento, mas não dá.



A mão acena pra que irá ajudar,



pois se o tempo é que é preciso



isso o relógio não fará.



Protela, adia, afasta a hora



Remói, covardia, depura a demora.



...



E



continua



fraco e forte - à espera -



do transporte



que não virá.







quarta-feira, setembro 24, 2008

O problema


Geralmente se acorda com um bocejo, um espreguiçamento de pernas e braços e coluna travada. Eu me levanto com coriza. É o primeiro sinal de uma semana que sempre começa ruim, mesmo que seja boa.


Por quê?! Porque a droga da segunda-feira me traz, além do anúncio de 5 dias úteis-inúteis, a percepção de que ainda estou no mesmo lugar. É sempre assim: passa um concurso, vai-se a esperança, os sonhos se destróem em camadas, quadro a quadro, como no delete de foto de máquina digital. Preciso tirar mais fotos.


E essa coriza, que não passa, pinga na camisa, escorre até os lábios, acaba com os papéis higiênicos de todos os banheiros, me lembra melancolicamente que meu nariz é apenas um de muitos dos meus problemas. Se meu nariz não fosse aquilino desse jeito, apontando para o inferno, ele apontaria para um problema maior: o futuro.


quinta-feira, setembro 04, 2008

Gelo e inferno


Chegou setembro e com ele o sol (mais sol). Uma calota se desprendeu. Ursos pulam de gelo em gelo. Na minha parada de ônibus, passou um veículo alternativo e espirrou fumaça preta na gente. Cheguei ao trabalho com cheiro de inferno-diesel. Isso não me aperreia tanto quanto visualizar ursos morrendo afogados por não ter onde ficar. Eu chegaria todo dia com cheiro de inferno, pra que o gelo dos ursos congelasse novamente. Pensando bem, não chegaria não. Porque é a fumaça do meu inferno que derrete o gelo de quem não tem nada a ver com isso.

quarta-feira, agosto 27, 2008

Memórias


Eu nunca fui uma criança levada. Mas, para alguns, sim. Na verdade, eu não consigo responder isto com muita minúcia, porque, de uma certa forma, ainda resguardo aquela mente inconseqüente de criança, que pensa impulsivamente e ficciona sobre os seus desejos do momento. Porém, diferentemente de antes, hoje eu planejo a ação.

A mente de uma criança é um vasto mundo limitado, que se expande a cada minuto, num ritmo absurdamente maior do que a de uma adulto. Enquanto gente grande se preocupa em acumular conhecimento, sentimento e fundos bancários, criança só se preocupa com prazer. Seja no que for!! A satisfação infantil é diretamente proporcional à subjetividade do momento. Criança quer resultado, quer tocar; ver, apenas, não satisfaz. Lembro de algumas histórias que sempre me rondaram com freqüência, e tenho poucas oportunidades de dividí-las. Lembro das inúmeras vezes que fui expulso de sala enquanto criança. I-nú-me-ras. Foram infinitos momentos vexatórios, "n" vezes de chamadas de atenção durante o jardim de infância.

Isto parece contrastar com minha primeira frase "...nunca fui uma criança levada...", mas é a pura verdade. Meus disparates e surtos de rebeldia infantil quase sempre eram causados por uma impulsividade marota, que não era relevante em meu temperamento. Eu sempre consegui ser quieto, obediente, estudar, fazer o correto. Contudo, meus momentos de língua solta - por serem genuinamente frutos de um idéia qualquer do momento - eram sempre notados. E devidamente punidos. Perdi as contas de quantos "Não devo conversar durante a aula" escrevi em folhas de pautado. Lá se vão na memória as mil vezes em que fui impedido de participar de algumas atividades por conta de mau-comportamento. O boletim lá anunciava: Assiduidade - Ótimo; Pontualidade - Ótimo; Aprendizado - Ótimo; Comportamento - Regular.

Meus primos estudavam na mesma escola que eu, em diferentes séries. Lembro que uma prima estudava exatamente na série anterior a minha. Um dos castigos que mais me eram dados era o vexame de ter de ficar encostado na parede da outra série, durante a aula das outras crianças, exposto, para pensar nos meus crimes. Quando eu era alfabetização, lembro da tia Tânia sentenciar: "Higgo, já pro Jardim III !!". Com medo de que minha prima me visse - o que logicamente resultaria em fofocas para minhas tias, e, conseqüentemente, para a minha mãe -, eu sempre ia pra outra turma, que não a de minha prima. Foram muitos os momentos em que, eu, na alfabetização, fiquei lá, na parede do Jardim II, vendo os moleques - como se eu tb não fosse - brincar de massinha. Enquanto minha sala deveria estar em alguma atividade mais adulta e dinâmica - atividade de alfabetização!!! - ,lá estava eu a sofrer a punição dos olhares das crianças pequenininhas...

Eu acho que na verdade isso nunca surtiu efeito. Porque eu nunca fui capaz de controlar esses arroubos, que, vejam bem, nunca foram suficientemente fortes para me definir como 'levado', mas também longe estavam de me atribuir um bom comportamento. Eu sempre fui assim, meio 'indefinível", e até hoje não consigo me rotular em muitos aspectos.

Outro momento merecedor de destaque negativo foi quando me lavaram a língua com sabão, por ter dito algum palavrão. Sinceramente, não acho que merecia essa punição, pois nem sequer era reincidente nesse tipo de crime !! Deve ter sido a única vez na vida em que disse um palavrão na escola, mas, como a sorte sempre jogava contra mim nessas horas, coube de meu delito ser investigado e devidamente julgado.

Outra vez minha mãe chegou em casa, decepcionadíssima, porque a professora havia 'fuxicado' - sim, fuxicado- a ela que eu, numa das festinhas de aniversariante do mês, passara o dedo no bolo !!! Eu gostaria de ver esse vídeo, pois, não tenho lembrança alguma dessa atitude!! Na época eu tentei me defender, mas, como meu currículo jogava contra mim, até eu mesmo tentei me convencer de que havia feito aquilo. Embora não o tenha feito. Pelo menos não lembro, que coisa!!

Essas lembranças de criança são mesmo curiosas, pois vão ficando registros de momentos os quais não escolhi registrar. Não há um catálogo organizadinho de momentos passados que eu posso consultar quando eu quiser. Eles apenas vão surgindo, em 'flashes', sem impedimentos e à revelia de minhas escolhas. Eu posso estar fazendo uma prova de concurso, quando a memória de meu pé entrando numa fossa vem à mente. Posso estar numa noite de insônia, quando uma aranha enorme vem pelo teto a me perseguir, enquanto grito pela minha mãe, da janela de casa. Eu posso estar digitando um trabalho, quando a lembrança de minha queda duas vezes consecutivas na mesma poça de lama, enquanto aprendia a andar de bicicleta, me aparece.

É-me estranho e confortador ter todas essas lembranças. De uma infância por diversas vezes sofrida, mas também proveitosa. Não sei a fórmula que define um levantamento positivo de determinada época de nossas vidas, mas sei que as variantes estão lá, embaralhadas, e me deixam ora triste, ora alegre, a depender da memória e do momento em que ela surge. Continuo, assim, sem definição, mas me apego às lembranças, pra ajudar a me esboçar. Mas eu nunca fui uma criança levada, vai... Pelo menos, não é desse jeito que eu me lembro de mim.

sexta-feira, agosto 15, 2008

Daqui da madrugada


Ah travesseiro,
prezado companheiro
das tragédias de todo dia

de todas as noites

que acabam, afoitas,

antes da hora de chegar a hora
do dia raiar.


Pra quantos lados terei que virar?

Pra quantos santos terei de orar?

Pra adormecer,

esquecer e não sentir
que sonhar acordado

é bem melhor

que forçar dormir...

Ah travesseiro,

maldito companheiro,

conte àquela noite mal-dormida
que minha vida

é quase sempre assim:

uma tentativa sofrida
de vencer no fim.

Deixe os olhos cansados notarem

tudo que eu não quero perceber direito

mas dê um jeito deles fecharem

apenas quando a noite não fizer mais efeito.

quinta-feira, agosto 07, 2008

Tem?


7 da matina - despertador do celular : reprogramo pra 7 e 30 e viro tranqüilo.

7 e 30 - despertador do celular: reprogramo pra 7 e 50 e viro cansado.

7 e 50 - despertador do celular: reprogramo pra 8 e 15 e viro preocupado.

8 e 05 - me levanto, com raiva.

8 e 35 - indo para a parada de ônibus, cheio de material pra estudar e minha havaiana de listras marrons e amarelas na bolsa. E um casaco tb. Faz frio naquele necrotério chamado biblioteca.

De 8 e 50 às 9 e 40 - ônibus lotado e quente. Quente. Quente. Uma velhinha pega meus milhões de livros. Isso é bom. Velhinhos nunca pegam livros. Ah! Um lugar vago na janela. Vou abrir. Como as pessoas agüentam ficar nesse mormaço, só para não ganhar alguns poucos pingos de chuva?

9 e 40 - desço. Iasc tá logo ali. Quero voltar.

9 e 45 - trombadinhas à frente. é melhor esconder o celular.

9 e 50 - estou ligando meu computador, pego o protocolo daqui que está em outro setor, e começo a despachar as pendências.


11 e 36 - estou livre de obrigações neste momento. Já li o blog de Zeca camargo, já comentei. Já falei com Carmen, ao telefone. Já ouvi dela que não a amo mais. Também já recebi uma mensagem de Lourdes dizendo que eu tb não a amo. Que interessante...Como as pessoas sabem mais do meu amor do que eu?

Já me amaldiçoei por não ter aqui nesse pc a tese que eu vou apresentar no Congresso de Anamaria, pois eu queria corrigir alguns detalhes. Já ouvi o CD ao vivo de Eva Cassidy , "LIve at Blues Ailley" e o "12 Memories", do Travis. Agorinha começou o "Girls and Boys", de Ingrid Michaelson.

Tem dia menos interessante? Tem perspectiva mais desejada?

Vou mimbora estudar.

terça-feira, agosto 05, 2008

O esconderijo


Saindo dessa capa de gordura

simpática e desajeitosa

esse é meu sonho mais feliz



Desse desalinho não-nato

Dessa sujeira limpa

que me (des)cobre a imaturidade



Vivo esse sonho

enquanto durmo por obrigação

da preguiça



E sofro longe disso

inerte na velha gordura

que ainda cobre

minha vida magra



e meus medos

mais escondidos.






quinta-feira, julho 03, 2008

Blog


A primeira idéia que pode surgir à cabeça quando se fala em ' blog' é que está na moda, que é uma espécie de identidade virtual que assegura e situa o indivíduo na rede. É o endereço, o espaço do usuário de internet. Se o fato de não existir um website com meu nome é demais para a minha ordinariedade, um blog é suficiente para tanto. Mas vai além disso.

O hábito advindo com a experiência vitoriosa dos 'blogs' na internet de uma certa maneira vai de encontro à preguiça sempre taxada como característica da geração internet. Ao contrário da simplificação de mundo imposta pelo mundo virtual, os blogs o expandem, detalham as culturas, os hábitos e os costumes. Explico.

Antes do "boom" de blogs, havia 'fotologs' - que ainda existem, embora em menos número, muito por conta do orkut, suponho -, e estes nada mais são do que a exposição de fotos - muitas vezes pessoais - acompanhados de textos, que serviam como mera ilustração ou explicação da situação na foto, etc. Em sua grande maioria, os fotologs serviam como um sintoma da necessidade de exibição, acompanhados de textos quase sempre modestos - para não dizer pobres. Os blogs surgiram como um caminho oposto.

Primeiramente, a proposta era criar um diário vitual, nos quais os indivíduos desabafariam assuntos por eles escolhidos, qualquer coisa, qualquer baboseira. Entretanto, nos blogs, a importância seria dada à palavra, e não à imagem.
Atualmente, existem blogs para todos os gostos. Existem, sim, os diários virtuais - muitos deles criativos -, mas ampliou-se o leque de possibilidades: há blogs de opinião, de resenhas, de críticas de cinema e música, de informação, de downloads, de links, literários, e até de - ora essa - imagens. Quase tudo na internet hoje termina ou começa através de um blog. Quase todo artista que se preze hoje atualiza um blog, a fim de interagir melhor com seu público e angariar outros tantos- ou simplesmente pela legítima vontade de se expressar pela palavra, como qualquer outro. Qualquer um cuja necessidade de desabafo seja tanta, que precise da liberdade de um infinito de palavras com quem conversar, hoje tem um blog à disposição. E adiante seguem inúmeros exemplos.

O cerne da questão que me vem escrever é justamente o inusitado que é perceber o crescimento do hábito de ler e escrever através de blogs, numa geração que foi - e é - tão taxada de preguiçosa para estas duas boas tarefas. Acadêmicos viram nesses espaços um universo de possibilidade de exposição de idéias. Blogs de humor e de curiosidades hoje são as vedetes desse universo, e servem como escracho de tudo e todos, sem dó, nem piedade.

Presenciar essa revolução de hábitos na internet - e participar dela - é, no mínimo, digno de emitir opinião. E a minha é que, quebradas as barreiras limitadoras de uma postura antipática da leitura tão inimiga do mundo virtual, deve-se nesse momento lutar pela qualidade do que se faz, do que se exibe, do que se escreve, do que se lê.
Não se trata de uma crítica à ignorância ou uma espécie de auto-denominação de padrão de qualidade, mas, com a difusão de idéias - e de liberdade de formatos - há um cuidado a ser tomado com que se toma como verdade. Um blog de notícias descomprometido com a realidade pode iludir e difundir mentiras. Um mal-intencionado pode disseminar idéias nazistas, elaborar assassinatos - como já aconteceu e certamente acontece, e pessoas têm acesso fácil e facilitado para isso. Blogs e sites de conteúdo pornográfico estão à mercê da visita de crianças!! E, em tempos nos quais pais se encontram cada vez mais distantes, e a infância disfarçadamente 'adultecida' é preocupante. Enfim. Junto com cada avanço, vêm os problemas, os excessos e os males.

E cabe a nós, usuários dessa ferramenta, almejar o dia em que a consciência seja aliada de toda boa ferramenta de comunicação. Não há como impedir a criação de agressões em forma de blog. Mas há como os servidores apagá-los. Não há como eliminar os destruidores de toda boa construção. Mas há como os afastá-los de nosso convívio. Sigamos na contra-corrente dos rótulos definidores de uma geração preguiçosa. Continuemos nos expressando. Continuemos livres para falar, dizer, conversar, comentar. Mas sejamos vigilantes da qualidade. Por mais que nossa qualidade seja, para muitos, muita porcaria.

quinta-feira, junho 05, 2008

Pra sempre


Tiro a areia das sandálias de couro que você me deu.

Meio sal, meio saudade dos tempos em que nossa casa era de luz.

Fotos ao chão, jogadas, quase escondidas debaixo dos móveis em que nos amamos

A observar, envergonhadas, todo o desejo que desmoronou.

Nelas, sou eu, é você, de algum jeito que a gente nem lembra mais

Nelas, não sou mais eu, não é mais você, desse outro jeito que a gente nem quer entender.

Era tudo tão feliz quando eu pensava num sorriso

Era tudo tão cardíaco, tão pulsado, tão detalhadamente imaginado...

Hoje é expressão sem expressão, fechada em pergunta,

um coração cansado, um pulso fraco, uma lembrança

quase esquecida de se ter.

É incrível como as melhores coisas de um tempo

nunca permanecem muito tempo.

Logo são substituídas por novos momentos

novos melhores momentos,

novas fotos que sobre os mesmos móveis

oniscientes e traidores móveis

se alçam, diferentes e imóveis, nos novos porta-retratos

a admirar outros personagens que se enveredam

em novos amores,

na ilusão do que tem de ser, de novo,


pra sempre.

quarta-feira, junho 04, 2008

O abismo


Eu subo a calçada

pensando em nada

só na última palavra

soletrada

pela sua despedida.


Desço a rua

até o fim da impressão

de que entendo errado

qualquer lado

de qualquer questão.


Na cabeça o eco

do que você diz

e não entendo.

Tudo implica no erro

do que faço

porque não compreendo.


Será bendita essa distância
entre o que ouço e interpreto?
Será maldita essa lança
que jogo pra te ter por perto?


Não sei de nada do que acho

Só sei daquilo que eu sinto.

Sei que aquele descendo a rua lá embaixo
Sou eu fingindo.

E aquele na calçada, do outro lado,

sou eu sorrindo.
* Imagem por Lucio Lobo Junior

segunda-feira, junho 02, 2008

Toda alma é meio gente


Toda alma é meio besta, meio tapada, natural. Toda ela é boçal, medrosa das perdas e saudosa dos ganhos que ainda não teve. Toda alma é quase tudo, pois cada dono possui um absurdo e vasto mundo fervendo na panela. É retrato do retrato do mosaico mais elaborado, como gente dividida e junta tudo reunida. Toda alma é meio lençol de cama quando ficam as marcas de quem ama. Toda ela é meio susto da verdade de existir, é meio medo do escuro de esconder. É meio revelação dos desejos mais criminosos, libidinosos e nossos. Toda alma é meio careta, um tanto quanto afeita à resistência de tudo que vem de novo. Toda ela é meio pra cima, quase pro meio, um tanto pra baixo, a julgar o humor. Dependendo do amor. Do que dói. Ou do que destrói, sem licença, sem desculpa, e sem ‘por favor’. Toda alma é toda etérea, meio fumaça, quase eterna, um tanto desgraça. Uma parte é do mundo de lá, outra do de cá, as duas dos dois e nenhuma sofre à toa. Nem todas boas, algumas más, todas erram, outras acertam, várias delas consertam. Nenhuma fica pra trás, todas vão adiante; toda ela é tão errante quanto o corpo que as abriga. Toda alma é suja de alguma mancha que ficou, e quase nenhuma não leva no dorso mágoa ou rancor. Toda alma é paciente, seja no sul ou ocidente, seja no norte ou oriente, qualquer lugar pra que se aponte. É tudo igual e diferente, tanto de lado, quanto ao avesso ou de frente.

Toda alma é meio gente brincando de ser inconseqüente.


* imagem por João Lobo

Rastro


Não foi à toa
nem enquanto.

Foi portanto
que tudo que é canto
desse meu pranto
de felicidade
ecoa nessa cidade

a inundar de alegria
esses caminhos quase secos de todo dia.

quinta-feira, maio 29, 2008

Many Shades of Black


Mais música aqui me traz. E não é música,música, no geral. É uma em especial. Uma que há 24 horas me toma a memória e a vontade. Uma cuja primeira audição me passou despercebida, não sei por que razão. Mas não mais durante uma noite de chuva, enquanto a ouvia, ensopado, numa segunda vez. Sabe quando algo chega para ficar? E isso você descobre no exato momento em que tal coisa aparece em sua vida? Foi essa música.. "Many Shades of Black", do album novo dos Raconteurs.. Sob um toró que me molhou até a alma, essa música se fez trilha. E durante todo o dia seguinte, ela persistiu. Ela não me cansa, não me enjoa. Já pude perceber tudo que ela traz consigo, não há mais mistérios a serem revelados com ela. E mesmo assim ela continua, nota a nota, como sombras em preto a vagar pelo meu (in)consciente, pela minha memória auditiva e pelo meu Mp3. Ela começa com um pedido rasgado de fim de relacionamento. "Jogue fora, jogue fora e atire ao chão". Uma frase ressaquenta de dor de cotovelo dá o tom inicial da música. Um início que imagino muito bem interpretado por Stive Tyler, do Aerosmith. Em seguida, a canção cresce e dá seus primeiros e impressionantes passos com um refrão dramático e chicletão e bonito de se ouvir, 'a la' Chris Cornell, do Audioslave. Do tipo que faria algum despercebido parar para ouvir. Entoada ao fundo por um lindo arranjo de metais, "Many shades of Black" é linda de cabo a rabo. É uma jóia incluída num album razoavelmente interessante. Dramática no ponto certo, apaixonada com parcimônia e ... desesperada, com um clima retrô modernoso. Trava o fim de uma relação, e não de um relacionamento. A letra nos apresenta a duas pessoas que, embora possivelmente se queiram, são incompatíveis. E como todo grande amor impossível impreterivelmente sempre fica guardado nalgum lugar, essa música insiste em ressoar, e soar e tocar meus ouvidos. Não sei se ela se tornará algum 'hit', não sei se cairá no gosto e no conhecimento das pessoas (só espero que não vire trilha de novela). "Many Shades of Black"... como uma doença boa de se ter, estou preso à enfermidade do 'repeat'. Enquanto isso, as sombras e os tons em preto de todas as relações impossíveis que porventura em minha vida possam existir passeiam pelos meus ouvidos, como uma intermitência agradável e desejada, em forma de uma bela canção. A melhor do ano, até então.

domingo, maio 18, 2008

À fogueira


Pretensões viram chuva. Chuva vira lama, que vira pesar, que vira arrependimento, que vira presente, que vira ressaca, que vira conta, que vira dívida, que vira angústia, que vira dor, que vira batimento cardíaco, que vira insatisfação, que vira dor, que vira hora, que vira relógio, que vira amanhecer. E vira dia, e vira novo, e viro eu, você e nós todos. Talvez seja meu álcool, talvez seja sua escolha, talvez seja sua ordinária e legítima pretensão de liberdade. Talvez seja minha insatisfação premente que me impede de me explicar, e precede toda a famigerada vontade de confessar tudo aquilo que quero e não consigo. Acovardo-me, como um tuberculoso à última noite, à espera de uma nova cura, que só me adoece. Sou todo chocalhos e esperanças e dúvidas e qualquer coisa que não se explique nesta vã comunicação.

*

Sou todo assim e assando.

sexta-feira, maio 02, 2008

Pra quê chorar?


Fraqueza, manha, desabafo, dor, ódio, alegria, susto, cisco,...Qualquer desses pode servir de causa justa para o choro. Diante da incidência maior ou menor das ocorrências desses motivos, uns estão mais acostumados a desabar em lágrimas do que outros. Um pedido sincero pode resultar num aceito instantâneo por conta de algumas lágrimas. Uma dor de qualquer coisa pode enfim ser levada a sério, apenas com alguns soluços. A emoção com alguma cena de filme parece muito mais completa quando você se pega tentando reprimir o choro - e não consegue.

O ato de chorar nos é inerente desde o primeiro momento de nossas vidas. Desde lá da ingenuidade de um feto que virou bebê. O trauma provocado pela retirada do nenem da confortável placenta é expresso através do quê? Ele mesmo, o choro. E assim nos acompanha como uma sombra. Enquanto não nos chega a maturidade que permite controlar os impulsos, não pensamos duas vezes em fazê-los vir à tona para alcançar nossos objetivos. Durante a infância, se trata de uma ferramenta imprescindível para qualquer guri que sabe o que quer - ou que pensa saber o que quer. E cabe aos pais talhar esse comportamento, que perseguirá esta pessoa por toda a vida. Os pais que não sabem ajudar o indivíduo neste momento, o de aprender a controlar a força emotiva do choro, mal sabem que estão impondo diversas dificuldades na sua formação social.

Isto porque não há nada menos interessante do que alguém que desperdice tal ferramenta com qualquer coisa. Explicarei: há pessoas que choram mesmo. São aqueles que possuem no choro seu único meio de demonstração de emoção. É como se houvesse um problema de encanamento nos vasos lacrimais. As válvulas que controlam tal escape neles são extremamente frouxas, jorrando lágrimas como faria uma pia furada. Dependendo do grau de legitimidade destas lágrimas, embora sejam muitas, elas são encantadoras. A crítica atinge justamente aqueles que se utilizam deste artíficio como uma forma de se destacar de alguma forma. Seja para conseguir o que quer, seja para ocupar um posto confortável de fragilidade, um meio irritante de retirar de si a responsabilidade de suas tarefas. Tais lágrimas carecem de sinceridade, sendo apenas um traço forte de falta de bom caráter.

Entretanto, por outro lado, choro também é fortaleza. E é justamente quando ele se reveste desta beleza, que se torna mais engrandecido. Todo mundo sente vontade de chorar. Alguns menos, por apresentar um temperamento mais calejado, por serem mais frios, mais comedidos, mais introspectivos - e sobre estes, ouso afirmar que os momentos de choro vêm na calada da noite, embaixo das cobertas ou durante o banho. Outros, se controlam sempre, sendo quase nunca flagrados num momento de emoção, mostrando equilíbrio, parcimônia...Porém, a fortaleza chega não quando as lágrimas são barradas por tal serenidade. mas quando essa tranqüilidade é perturbada pela nobreza verdadeira do choro desabafado. Trata-se de uma das melhores experiências que um ser humano pode experimentar. É quando lágrimas economizadas e guardadas num ato sério do autocontrole recebem o sinal verde do descarrego da emoção. Geralmente, tal fato acontece quando há combinação de 'momento-ombro amigo-ambiente propício-acúmulo de emoções'. Tal combinação é fatal, e, ouso dizer, infalível quando a variante álcool incide como catalisador. Esse desabafo é aliviante, lava não apenas o rosto, mas enxagüa o corpo todo por dentro. O coração fica mais leve, os batimentos fluem com a correnteza, o indivíduo se anestesia como num consumo de entorpecente. O soluço abre espaço para a nobreza de demonstração de emoção verdadeira.

Assim, resta claro que o choro é bem-vindo quando legitimado pela verdade nele. O desperdício de chorar faz carecer a credibilidade na pessoa que chora. As lágrimas devem se revestir da natureza de quem se emociona. Uns mais freqüentemente, outros nem tanto, como dito. Mas nada é mais emocionante do que observar alguém que se emociona de verdade, e chora por isso. E melhora com isso.


***


Pra quê chorar? Pra chorar menos.

segunda-feira, abril 21, 2008

Promiscuidade


É como uma obstinação constante. É um hábito prazeroso esse de conhecer gente, de experimentar gente, de reviver uma amizade diferente sempre. Um promíscuo, não menos confiável, não mais importante. Apenas amigo. Com toda banalidade e importância que se possa ter.

O ser humano possui essa tendência limitadora (não errada, afirmo) de criar pódiuns mentais, de estabelecer critérios de desempates entre as pessoas, de caracterizá-las como em listas, mascarando tal atitude como "estabelecer prioridades". Eu chamaria isso de propriedade privada do coletivo.


Para explicar melhor meu ponto de vista devo acrescentar que a pessoa precisa se fazer importante para a outra. Seja nos 5 minutos que têm para tanto, seja nas 24 horas. E essa importância não se faz com declarações, não se cria com presença apenas. Esse valor é natural. Não é uma obrigação a ser necessariamente conquistada, muito menos um objetivo obrigatório. Pessoas se gostam. Elas aprendem a se admirar, e esforço não é contundente para isso.


Gosto de colecionar meus pares. Muito me agrada ter vários laços, muitas vezes difíceis de administrar, sendo quase sempre impossível de agradar a todos. E essa união de grupos dos mais diversos me faz experimentar as mesmas sensações, travestida de posturas diferentes. Como numa espécie de adaptação instintiva, confesso que gosto de conhecer as excentricidades alheias, e, se não me agradam, sobrevivo a elas, aprendendo com o exemplo que não quero para mim. Se me conquistam, quero-as perto, como parte da coleção. Uma espécie de troféu do coração.


O grande desafio desta tarefa é conviver com a diversidade de temperamentos. É preencher as expectativas que os outros depositam sobre você. E, diante da inexistência de perfeição, é humano perceber que, apesar das impossibilidades, o que é verdadeiro sempre fica. E, com esse jeito agregatório, prefiro construir alicerces das mais diversas arquiteturas, texturas, modelos e materiais. Minha base se faz mais sólida. E, meu projeto de vida, mais valoroso.

Mais resistente aos impropérios da vida.



segunda-feira, março 24, 2008

Mais uma vez e novamente


Eu sei e você sabe também muito bem
Que quando um amor assim se acaba, pode haver ninguém.
Dessa vez não foi diferente, eu ouso até dizer
essa tortura que a gente não pôde esconder
destruiu minha paciência dada a você.

Tantos protestos do seu corpo tive que agüentar
Mesmo querendo tal distância não pude evitar
Premissas e convencimentos me adiaram a dor
de partir antes que esquecesse desse seu amor
toda loucura consagrada num pranto sem cor.

Mas olha bem
Não é porque eu sou sozinho, hein
que você joga esse seu charme e tem
todo o meu tempo e sentimento guardado na mão
e me devora todo alarde que inventara em vão

Pensa bem
Não crie dúvida em seu coração
me deixe em dívida com a compaixão
Pois nesse jogo de pecado, só não quero ter ao lado
alguém sem razão.

Não, não, não,
não peça perdão
Quem vem pode ter boa intenção...
Vai, sai, me distrai toda essa tensão

Sempre que eu prevejo o jogo erro sem querer
Toda vez que eu me despeço tropeço em você
Mas não demora muito a hora da gente saber
Que a vitória é mesmo de quem não souber sofrer

Minha loucura me pedindo doida pra ficar
Meu raciocínio calculando o quão veloz correr
Sua presença em sacrifício motiva a tentar

Mais uma vez e novamente, dessa vez é diferente?
Você não será ausente? Vou tentar, não se atormente...

Arrependimento sente quem pagou pra ver.

sexta-feira, março 14, 2008

Hiato


Não esquecer da hora, não lembrar de ter desânimo, não desviar do objetivo, não perder tempo em vão. Lembrar sempre de tudo que pode ser importante, ter atenção. Não, não se deixe iludir. Você consegue. É só pensar positivo. Ok, ok, vá com calma! Teu cérebro já fritou? O que lhe falta é disciplina. Você sabe disso. Você tem a faca e o queijo na mão. Meu Deus, como pode ser tão rápido?? Cuidado, cuidado com a falta de atenção! Leia direitinho, não tenha pressa...Você leu tudo, não sei se entendeu. Mas você leu. Tenho certeza que tudo vai dar certo. Pelo menos, você deu o melhor de si. Pelo menos você se esforçou. Estou orgulhoso de você! Me mata de orgulho! Acho que fizemos a maior merda do mundo. Merda ou não, o que está em jogo é uma tal de mudança de vida. Deixa a merda contecer.

terça-feira, janeiro 29, 2008

Demônio na estrada


Meia-noite. A mata seca e alta já começara a rarear no acostamento. Já podiam-se ver campos igualmente secos entre as folhas, através de olhos muitos deles úmidos já de saudade do que deixaram. Viagem de 12 horas não é fácil para ninguém, por mais que se acostume com o sacolejo vertiginoso. A meio caminho de viagem em direção a São Pilar do Céu, muitos daqueles rostos levavam marcas de uma saudade sendo construída. Aquele olhar terno formado quando se imagina entes queridos.

O ônibus não tão velho, não muito confortável, porém não insuportável, trazia 45 pessoas, incluindo o motorista. O mais jovem na verdade ainda sequer possuía idade, pois viajava numa placenta, pertencente a Maria da Graça, de 13 anos. Expulsa de casa por seu pai, Maria da Graça levava poucas roupas e muita aflição em direção à fazenda de tios, os quais mal conhecera.

Logo atrás de Maria da Graça estava Dona Zeferina Baudalho, do senso de sua consciência nonagesimal. Formação na vida: benzedeira. Seguia para São Pilar do Céu em busca da paz e do sossego que sempre perseguira. Não, Zeferina não estava se aposentando. Ia, junto com seu neto mais velho, Augusto dos Anjos da Silva, em busca de notícias de sua amada e sumida filha, Giselda Baudalho, que rumara para aquelas bandas há anos, e extinguira inexplicavelmente suas cartas. Dona Zeferina levava consigo a esperança do reencontro e mirava a todo minuto a foto da filha saudosa , como se para lembrar que a cada curva se aproximava dela.

Em seguida, pessoas de todos os tipos. Pessoas humildes de todos os tipos. Choro de crianças pequenas era quase sempre audível. Choramingos de impaciência, por percorrer uma distância tão longa. Em cada assento, uma história diferente, como a de Manuela e Juvenir, recém-casados, buscando em São Pilar do Céu uma oportunidade de emprego oferecida ao jovem rapaz. Como a de Antônio Pedro, seminarista, devoto e santo, rumando em direção a uma visita a serviço de sua paróquia, como cumprimento de um roteiro carismático promovido por seu Bispo, no intento que chamava de "União das Almas católicas Sertanejas". Completando as filas, famílias inteiras: filhos, pais, mães, sobrinhos, netos, bisnetos, tatarenos de alguém, seguiam seus destinos, cada um por um objetivo próprio.

Esse ônibus carregava sentimentos dos mais diversos. Felicidade pela saída, medo pela chegada, ansiedade pelo inesperado, tédio pelo obrigação, cansaço pela espera, tudo isso se misturava numa aura multi-color que encobria o veículo pelo caminho asfaltado entre matas já escassas, como uma bala a percorrer um sulco esburacado. O ônibus seguia firme em seus solavancos, que mais lembravam artrites em idosos, enquanto muitos de seus passageiros já desfrutavam do ronco nervoso de mais uma noite mal-dormida.

E, como um flash de luz, como num take de cinema, a câmera lenta começou a rodar. E junto com ela, malas, roupas, escovas, bolsas, sacolas, óculos, jornais, pertences diversos. Os passageiros confundiam-se com seus objetos, na dança disforme provocada pelo capotamento que começara sem aviso. Não fosse pelo súbito enjôo que sentira antes do acontecido, Maria da Graça morreria sem ter presenciado a mandíbula do jovem seminarista Antônio Pedro esmagar-se em osso e sangue no banco da frente. Ao mesmo tempo em que Dona Zeferina Baudalho enforcava-se com o próprio cinto de segurança, tentando sem sucesso agarrar as mão de seu neto, Augusto dos Anjos, cruelmente arremessado para fora numa das capotadas. Maria da Graça, com as mãos na barriga, era um misto de batimentos cardíacos, lágrimas, desespero e explosão interna. Caso as memórias de sua quase-morte fossem levadas consigo às portas do plano superior, ela sentiria seu abdômen, juntamente com seu filho, ser esmagado por ferragens destemidas, contorcidas, maceradoras de sua carne jovem e fértil. Uma cesariana crua e assassina fora feita enquanto o banco em que viajava se dobrava em 4 partes diferentes sobre e sob o peso de outros bancos. Sobre e sob os corpos de outras pessoas. Manuela e Juvenir, os recém-casados, despediam-se aos gritos de socorro. Irônico, não fosse trágico, terem ao final de tudo, como única parte intacta em seus corpos, as alianças baratas compradas por Juvenir a mil prestações antes do casório.

Mato, vidro e ferro, tudo embolado no sangue das vítimas. Uma capotada. Dois mortos, dentre eles o motorista, Fagundes, que, apesar de ser o primeiro esmagado, foi o único a presenciar a aparição que provocara o acidente. O outro falecido instantaneamente havia sido o bebê de Maria da Graça, arrancado violentamente do ventre de sua mãe pelas garras oxidadas do ônibus. Segunda capotagem. Mais 21 mortos. Terceira. Mais 17 mortos. Instantaneamente.

Ao final da quarta, os cinco que ainda restavam, caso ainda se podia chamá-los por seus nomes, haja vista o estado físico de cada um, davam seus últimos gritos de horror. Maria da Graça, sangrando por todos seus orifícios, era desespero puro, encoberta pelo pedaço de carne roxa que se tornara Dona Zeferina Baudalho. Ao lado delas, Antônio Pedro, o seminarista, não possuía mais face, mas sim uma máscara ornada por lentes de óculos enfiadas em seus globos oculares. Tremia seus últimos movimentos de dor, ao lado de Manuela e Juvenir, que, incrivelmente, haviam sido os menos danificados, não obstante o corte profundo na testa dela e as múltiplas fraturas expostas nas pernas dele. Mesmo assim, ainda vivos, porém quase-mortos, todos os cinco ainda gritavam, amontoados uns sobre os outros, quando o fogo começou a tomar tudo o que sobrara da tragédia. Já anestesiados de dor, os cinco últimos a perder suas vidas no acidente do ônibus para São Pilar do Céu queimaram como mártires numa fogueira.

E, se pudéssemos, como naquele take de câmera lenta, voltar a fita, para saciar a curiosidade sobre o que acontecera, veríamos a meiga figura que fizera Fagundes desviar tão impetuosamente, àquela velocidade, naquela escuridão. De pé, ainda no meio da pista, a sinistra figura de uma garota observava o que não sobrarara do ônibus para São Pilar do Céu. Enquanto o ônibus cintilava em chamas e borbulhava em ferro e borracha e pele derretidos, na escuridão da noite da estrada entre as folhas de uma mata do sertão, 45 vidas eram incineradas. E, ateando fogo com os dentes, sorria, do asfalto, uma garota. Sorria, do asfalto, mais um demônio.

quinta-feira, janeiro 24, 2008

Ledger...Lenda?



2008 já começa com turbulência na indústria cinematográfia. Não, não é mais um filme sobre seqüestro de aviões. O seqüestro em questão, aliás, o desaparecimento de que se fala é a falta de tranqüilidade. Greve dos roteiristas ainda indefinida, festa de Globo de Ouro cancelada, Oscar temeroso pela possibilidade de cancelamento...Tudo isto já provocou rumores refletidos nos mais diversos estúdios mundo afora. Mas eis que a vida põe tudo isso de lado, e muda os refletores. É através da morte que ela secundarizou todas estas as crises já citadas. Primeiro, Brad Renfro é encontrado morto pela namorada, supostamente vítima de overdose. Em seguida, Heath Ledger encontra o mesmo fim: o corpo do ator foi surpreendido por sua empregada e massagista, aparentemente vítima de uma overdose (acidental?) de pílulas parta dormir. Antes fosse mais um roteiro de Hollywood. Mas é realidade.

James dean, Bruce Lee, Brandon Lee, River Phoenix. Estrelas precocemente levadas do recinto terreno, pelos mais diversos motivos. Tão chocante e repentino se torna o fato, que logo se tornam mártires. Numa espécie de marketing pessoal póstumo (e mórbido), tais estrelas alçam, mesmo após a morte, algo semelhante à "Calçada da Fama" de nossas consciências. Como numa espécie de agradecimento pelo pouco (ou não) a nós por eles proporcionado - em virtude da brevidade de suas vidas-, além de uma forma de recompensa pelo trágico da chegada da morte em idade tão pouca, prontamente a opinião pública os imortaliza, criando uma espécie de símbolo da fragilidade da vida ante à irremediabilidade da morte.

O ator Heath Ledger, a mais recente perda, infelizmente é mais um desses exemplos. Porém acrescento méritos maiores do ator em vida, mais do que simplesmente a forma de sua morte, que cooperarão para a imortalização de seu nome:o trabalho deixado por ele. De astro adolescente a ator dedicado a papéis desafiadores, sua trajetória ascendente traçava caminhos parecidos a estrelas consagradas, como Johnny Depp ou Edward Norton. Como Jake Gyllenhall e Ryan Gossling, Ledger constava do rol de jovens atores experientes e de currículo invejável.

Seu último trabalho, o coringa, no mais recente filme do Batman, já levantara ótimas expectativas, elogios ecoavam a cada exibição do trailer, em que, ironicamente à nossa falta de alegria, ele imortaliza a fala: "Why so serious?". Não apenas sérios. Fãs, profissionais das mais diversas áreas artísticas ao redor do mundo, entre tantos outros que acompanhavam sua carreira, hoje estão tristes. Lamentando não apenas a perda de uma vida que cumpriu com louvor seus destínios, mas a fatalidade da morte, em hora tão inesperada. Sem contar o carisma e o talento perdidos no que se poderia chamar de auge da carreira. Seria como um piloto de Fórmula 1 falecer a caminho do pódium. Ledger estava prestes a colher e desgustar de uma consagração conquistada com trabalho sério e competente.
Pessoalmente, sempre admirei suas escolhas e seus papéis e claramente via que ali estava algo de substancial. Ledger não era mais um ator, entre tantos. Era um dos melhores. Como ele, no Brasil, eu citaria Selton Mello, Caio Blat ou Rodrigo Santoro. Atores que trazem em seu nome um currículo de qualidade. Mas, infelizmente, o nome de Ledger, que ultrapassara os limites da promessa, para sempre será associado à efemeridade irremediável da vida. Ledger deixa seu talento registrado como um ícone, e, com ele, a inconfortável pergunta: como lenda?

sexta-feira, janeiro 18, 2008

Beatles do Século XXI




Tudo bem. Não causam a mesma histeria. Não possuem a mesma popularidade. Não possuem o mesmo apelo pop e nem a mesma atenção da mídia de massa. E não é neste ponto mesmo que reside a comparação. Assim, se há alguma banda neste mundo que contribui tanto para a Música quanto os Beatles um dia contribuíram, esta é Radiohead.

E não é preciso falar o quanto os tempos são diferentes. Hoje, diante do acesso à infinidade de profusões culturais mundo afora, o meio se torna cada vez mais competitivo. É cada vez mais difícil chamar a atenção, se destacar, mesmo onde se produza mais novidade. Hoje, uma boa novidade de talento pode não sobreviver, simplesmente pela dificuldade de se estabelecer em terreno tão fértil, do qual brotam novos semi-deuses a cada esquina. Cada novo lançamento é uma nova promessa. E o que chamo de lançamento não é mais um grupo engomadinho impulsionado por qualquer gravadora qualquer, mas, por exemplo, uma jóia que se ache nos garimpos no mundo internético do MP3.

A mídia atual é tão volátil quanto o surgimento dessas novidades, e confirmar talento, fôlego e reinvenção em tempos como estes é tarefa nunca antes enfrentada. E isso o Radiohead vem fazendo com louvor. A cada novo passo na carreira, surpresas. Eles vêm confirmando as profecias que sempre os acompanharam. Seja revolucionando o modo como um artista consagrado disponibiliza novos trabalhos, seja mostrando que o palco é o melhor lugar para materializar a Arte sonora, o Radiohead se impõe como pioneiro. De minha leiga opinião, creio que existe uma coisa muito importante no meio musical: a moral do artista. Hoje, tal palavra está banalizada. Qualquer sucesso radiofônico que se repita 300 vezes ao dia pode ser taxado como proveniente de um artista. A qualidade não é tão relevante e o consumo, como todo bom mercado capitalista, dita as regras. A mídia musical tornou-se uma fornalha de talentos vendáveis, de marcas que pulam dentro de estilos caricatos e geram riqueza.

Viver de música em tal celeiro é uma tarefa árdua. A não ser que se conquiste a moral. Onde quer que vá, Radiohead leva consigo o rótulo justíssimo de talento proveniente do esforço artístico, e não apenas como um mero fenômeno de mercado. A banda parece ter noção exata do que representa para o cenário musical do MUNDO (!) e da legião de admiradores e reconhecedores de seu trabalho nos diversos meios: fãs, jornalistas, críticos musicais, admiradores da boa música, etc.

Ademais, o Radiohead vence quaisquer tentativa de encaixe de segmento. É rock demais para eletrônico; Pop demais para Rock; Indie demais para Pop, e por aí vai. Radiohead, assim como Beatles, reinventou uma nova classificação. Não se qualifica perfeitamente em nenhuma prateleira; trafega pelas prateleiras a cada album, a cada faixa. Album: Radiohead parece conhecer por inteiro o que significa tal palavra. Algo com início, meio e fim, como qualquer obra de Arte, dotada de um significado que por menos uniformidade que possua, confira a possibilidade de se extrair algum entendimento.

Trata-se de uma banda 'sui generis', distante de qualquer imitação, acima de qualquer crítica pejorativa. Radiohead, assim como os Beatles, tem MORAL. Uma banda que traz em seu nome um selo de qualidade, fazendo de suas músicas hinos exemplares de trabalho a ficar para a posteridade. A música que deles hoje escuto ecoará nos ouvidos de incontáveis gerações futuras, não tenho dúvidas. E seu trabalho já está sedimentado como um dos mais notáveis desta breve História da Humanidade.

*Se John Lennon ainda fosse vivo, talvez ele olhasse para Tom Yorke sem precisar pedir que ele se levantasse.*

E se o mundo, hoje, tivesse apenas um rádio, este tocaria Radiohead.

sábado, janeiro 12, 2008

Diagnóstico


Doutor me avisou
que estou curado
que os batimentos
estavam acelerados
por conta de alguns tormentos
não resolvidos
mas basta uma dose de um certo remédio
pra destruir o tédio
e levantar todos os prédios
que desabaram
quando você se ia.
O que eu não via
talvez você também não enxergasse:
uma miopia e uma cegueira
juntando desastres.
Mas basta uma nesga de coragem
e de impetuoso desejo de limpar arestas
que do pranto se faz festas.
Pressão aumenta, esperança renovada
cá estou à espera de uma outra levada
que junte minha vontade com o que desejas
e transforme tudo que não foi

em algo que talvez seja.