sábado, março 31, 2007

O esboço de Constâncio


É difícil a vida de viver onde não se sinta vivo o suficiente. O fato de completar-se não é um fato. É um ato!! Nós somos inerentemente incompletos, ao ponto de, por mais esforços que tenhamos com o objetivo de preencher-nos os vazios, mais valas interiores vão se formando, clamando por novas metas, novos preenchimentos.

Muitos hão de dizer - e o dizem - que nossa incompletude é a maior arma contra o desmantelo da acomodação. E até o é; mas não é imprescindível! É um elemento que, se presente, ótimo; se ausente, no caso daqueles seres de poucos desejos e de fácil satisfação, não é um grande mal.

Diante dessas reflexões, Constâncio sentia-se insatisfeito. Porém, não do medo subjacente à nossa natureza- não era do constante desejo do mais de que ele prescindia. O mal de que padecia Constâncio era o de exercitar algo recompensador, consubstanciado na tragédia de viver racionalmente no pátio da segurança monetária, em detrimento da satisfação emocional de viver do que se gosta.

É isso mesmo: faltava-lhe estímulo. Faltava-lhe calor e ânimo. Estava cansado de tentar e tentar novamente tentar de novo. Havia desistido de buscar resgatar o pouco que sobrara de um amor que na verdade nunca acontecera. Sentia-se engatinhar enquanto outros quebravam recordes. Acumulava sensações de inadequação à medida em que acrescia o desdém por sua atual condição.

Eis o ato-fato interessante: a incompletude que deveria impulsionar a luta de Constâncio contra seu aflito desespero era a principal responsável pelos seus ensaios de desistência! E desistir a esta altura da vida seria até honesto, mas seria feio e covarde e desinteressante.

Assim, num arrasto desequilibrado, num piloto-automático sem muita rota, Constâncio apenas seguia a fila, andava sem guiar-se sozinho, no encalço dos passos da frente. Ia em direção à luz do que lhe garantiam ser seguro, mas sem cultivar os otimismos das centenas de boas conquistas que constantemente lhe atribuíam. Diante disso, das duas uma: ou Constâncio continuaria este eterno esboço mal-feito e mal-determinado ou cairia na depressiva mediocridade da falha irrecuperável do fracasso pela desistência.

Caso não superasse suas dificuldades - esses temores irritantes do que seria do futuro, tendo em vista o triste presente -, certamente Constâncio desviaria dos dois destinos acima preconizados. Pois não havia nascido para ser modelo de rotina que reproduz em vez de criar, nem muito menos para sucumbir à miséria de diluir-se no erro da incompetência.

Portanto, eis a estratégia elaborada por Constâncio: perpetuar-se-ia pelo caminho inóspito das lamúrias do desconforto de não se completar - tentando desperadamente buscar algum sentido escondido nessa viagem turbulenta e aparentemente desproposital- , mas acresceria às suas virtudes o revigorante exercício de buscar perceber o momento certo de aventurar-se no que passaria a dar-lhe prazer, e não sucumbir ao que o matava de tédio. Restava saber apenas se Constâncio teria a suficiente coragem de redirecionar suas coordenadas quando o grande momento chegasse. E mais ainda, se ele perceberia tal momento.

Logo, Constâncio, que nunca usara um bússola, seria obrigado a encontrar seu verdadeiro norte quando a vida, enfim, o apresentasse à grande oportunidade de mudar, o que transformaria uma vida esboçada no trabalho evolutivo da construção de uma Obra, no mínimo, bem encaminhada.

segunda-feira, março 19, 2007

Entropia peculiar (des)equilibradora


Aprendi em química que as moléculas, dependendo do estado físico da matéria, agrupam-se afastadas ou próximas umas das outras. Quando bem próximas, eis o sólido. Afastando-as mais um pouco, líquido. O grau de afastamento maior determina o gasoso.

Eu me penso como um ser sólido. Tudo bem que tenho líquidos e gases, e que muito do meu corpo é formado de água, portanto minhas moléculas, caso sigam as leis da química, estão num estado meio que próximo-afastado. Mas, não obstante à liquidez que me faz organicamente vivo, há massa. E essa massa entendo como responsável pela minha solidez. E o que visualmente entendo como sólido, interiormente entendo como...há algo mais gasoso do que o gasoso?

Há momentos em que a entropia interior que nos acompanha destrutura qualquer arremedo químico, engana quaisquer experiências físicas mirabolantes, camufla seja qual for a lei científica...E essa desestruturação interna na prática poderia refletir uma mudança de estado físico, mas na minha louca teoria de existir representa uma fase de procura, de confronto e de constante adaptação. É a minha entropia. Uma espécie de desorganização conflituosa e problemática. Confusa. Prejudicial. Mas intrigante. Questionadora. E desafiadora. Uma típica entropia peculiar (des)equilibradora. Trata-se de um estado de existir representado pela ausente presença da lucidez, pela corajosa covardia de desestimular-se, pelo apropriado sentimento de sentir-se impróprio. Deslocado. Como se a certeza do caminho aparentemente certo mostrasse agora quanto o fora falho. Como se a opção pela saída racional não fosse suficiente para completar as emoções mais necessárias do agora. Como se o impulso avassalador de deixar-se engolir pelo caminho irremediável da desistência se mostrasse encantadoramente convidativo. Alucinógeno. Desvirtuador. Mais forte?

***

Não sei ao certo explicar como tais escolhas passadas, agora questionadas no presente, serão capazes de determinar meu futuro. Mas sei que durante algum tempo tal estado de entropia seguirá confundindo minha psicologia de esquina.

Que a melancolia disfarçada de gentileza e fortaleza simpática siga sempre a esconder tal descontrole!! Imperceptível. Mas confessional.

Como os pecados que precisam de rezas e arrependimentos sinceros, assim discorro sobre a minha entropia. Um estado quiçá passageiro que ensine a grande lição de que o determinante na busca pela razão de existir é a consciência inconseqüente sobre o que nos constitui. Talvez essas moléculas estejam desarrumadas mesmo, talvez estejam me desorganizando, me desarrumando..Mas talvez representem a desconfortável sensação do conserto. Da cicatrização.

Que venham as marcas desse desarranjo transfigurado em crescimento. Talvez falho para uma experiência química, mas engrandecedor enquanto confusa experiência de vida. São esses momentos de encruzilhadas cortantes, perigosas e desconhecidas que nos tornam essa mistura molecular densa, porém humanamente encantadora...