quinta-feira, setembro 20, 2007

A humilhação de Antunes


Antunes acordou cedo. Ao lado, apenas o quente da cama deixado por Marta, já em seu compromisso com sais e cremes e hidratantes relaxantes no banho curador de seu devastador mau-humor matinal. Calçou suas sandálias, pôs o roupão que havia ganho de dia dos pais, bordado “Papai dos Sonhos” no bolso. Suíte ocupada, vontade enorme de urinar, desceu as escadas em busca do “pit-stop” mais próximo, o banheiro social do fim das escadas. Porta fechada. “Sou eu, pai”, resposta de Diego, seu filho mais velho.
Rogando uma praga à má sorte, enquanto aumentava copiosamente a vontade por uma privada, subiu as escadas, roçando as pernas no modo que todos fazemos para impedir um dilúvio, mãos em concha sobre seu órgão, inibindo qualquer jato involuntário. Ardência à vista ao se deparar com a porta trancada de sua doce Marilinha. Desespero em forma de suor na testa e caretas. A essa altura, batia na porta em sofrimento, rogando para que a filha abrisse a porta, a fim de aliviar sua tensão. Lá dentro, passos de um lado a outro. Não notou que eram quatro pés lá dentro a correr em outro tipo de desespero. Marília gritava que estava se trocando, não podia atender. Do lado de dentro, Marquinhos-Boladão, enrolado no lençol de infância de Marilinha, procurava suas roupas de baixo e suas calças, que se confundiam nos ursinhos de pelúcia e bonecas Barbie da garota.
Lá fora, um Antunes meio roxo, meio rosa, totalmente aflito, mãos quase dilacerando suas partes, olhava por todos os lados à procura de um vaso de plantas, vasilha de água do cachorro, qualquer coisa. Nada. Precisava agir rapidamente. Duas saídas: procurar novamente o banheiro de baixo e rogar ao filho que dividisse a privada por alguns segundos ou gritar pela piedade de Marta e atrapalhá-la. Escolheu a esposa, pois mais alguns passos descendo a escada significariam “Niagara Falls” descendo para a sala.
Voltava ao quarto pisando em ovos, deslizando pelo corredor num arrastar de dar pena, pensamentos focados em objetos sólidos. Última solução. Interromper Marta, sua difícil Marta, em seu momento mais seu. Já próximo da entrada do quarto, Marília começou a abrir a porta. “Graças, meu Deus”, pensou. Era agora ou nada. Antunes arriscou-se numa corrida fatal de volta ao quarto da filha, decidido a atropelá-la pelo caminho, se preciso. A urgência justificaria. No meio de seus metros rasos pelo corredor, viu a pontinha da cabeça de Marilinha observando pela porta até então entreaberta, numa atitude obviamente desconfiada a um observador em estado normal. Antunes mal notou a tentativa da filha de investigar a barra-limpa, decidido a passar até pela fina brecha que inexplicavelmente se mantinha. Dois segundos depois batia impetuosamente na porta trancada, dessa vez com um estampido.
Gritava, esbravejava, lágrimas copiosas faziam coro às batidas na porta, pressão total na parte de baixo dava o tom. A filha não respondia, enquanto a estranha correria e os sussurros se faziam perceber no quarto. A essa altura, havia pouquíssimo por fazer, sua cueca já pingava urina por todo o assoalho, mãos ainda em concha tentando impedir o desastre também se molhavam com o líquido quente e amarelo. Vazava por entre seus dedos, parede atingida, tapetes atingidos, vergonha atingida. Mais ainda quando apareciam ao mesmo tempo Marta coberta de espuma vinda do quarto, Diego angustiado pela escada, ambos chocados com a cena. Os gritos de Antunes, o rosto vermelho de Antunes, a raiva de Antunes explodiam junto com a pressão de sua uretra.
Abrindo a porta, Marilinha não viu alternativa senão revelar seu crime, no intuito de socorrer o pai perdido em apelos. Foi assim que Marta, Diego, Marilinha e Marquinhos-Boladão presenciaram a vergonha de Antunes. E foi desse mesmo jeito que Antunes, cuecas molhadas, pernas molhadas, mãos molhadas, preparava-se para matar aquele estranho que, junto com sua família presenciava sua humilhação. Pretendia fazê-lo engolir cada costura de sua cueca molhada e limpar cada poça de urina do assoalho com aquela língua furada.
Mas nada fez Antunes, pois Marta já o enxotava da cama, aos berros, derrubando-o no chão, enquanto ladrava pelos seus edredons, empapados por mililitros fedorentos de urina, os quais tentava freneticamente esfregar-lhes na cara, enquanto gritava loucamente: “Mijão! Mijão! Mijão!”, lembrando a Antunes como é difícil fugir da humilhação, quando ela se faz presente tanto nos sonhos quanto na vida real.

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