quarta-feira, agosto 27, 2008

Memórias


Eu nunca fui uma criança levada. Mas, para alguns, sim. Na verdade, eu não consigo responder isto com muita minúcia, porque, de uma certa forma, ainda resguardo aquela mente inconseqüente de criança, que pensa impulsivamente e ficciona sobre os seus desejos do momento. Porém, diferentemente de antes, hoje eu planejo a ação.

A mente de uma criança é um vasto mundo limitado, que se expande a cada minuto, num ritmo absurdamente maior do que a de uma adulto. Enquanto gente grande se preocupa em acumular conhecimento, sentimento e fundos bancários, criança só se preocupa com prazer. Seja no que for!! A satisfação infantil é diretamente proporcional à subjetividade do momento. Criança quer resultado, quer tocar; ver, apenas, não satisfaz. Lembro de algumas histórias que sempre me rondaram com freqüência, e tenho poucas oportunidades de dividí-las. Lembro das inúmeras vezes que fui expulso de sala enquanto criança. I-nú-me-ras. Foram infinitos momentos vexatórios, "n" vezes de chamadas de atenção durante o jardim de infância.

Isto parece contrastar com minha primeira frase "...nunca fui uma criança levada...", mas é a pura verdade. Meus disparates e surtos de rebeldia infantil quase sempre eram causados por uma impulsividade marota, que não era relevante em meu temperamento. Eu sempre consegui ser quieto, obediente, estudar, fazer o correto. Contudo, meus momentos de língua solta - por serem genuinamente frutos de um idéia qualquer do momento - eram sempre notados. E devidamente punidos. Perdi as contas de quantos "Não devo conversar durante a aula" escrevi em folhas de pautado. Lá se vão na memória as mil vezes em que fui impedido de participar de algumas atividades por conta de mau-comportamento. O boletim lá anunciava: Assiduidade - Ótimo; Pontualidade - Ótimo; Aprendizado - Ótimo; Comportamento - Regular.

Meus primos estudavam na mesma escola que eu, em diferentes séries. Lembro que uma prima estudava exatamente na série anterior a minha. Um dos castigos que mais me eram dados era o vexame de ter de ficar encostado na parede da outra série, durante a aula das outras crianças, exposto, para pensar nos meus crimes. Quando eu era alfabetização, lembro da tia Tânia sentenciar: "Higgo, já pro Jardim III !!". Com medo de que minha prima me visse - o que logicamente resultaria em fofocas para minhas tias, e, conseqüentemente, para a minha mãe -, eu sempre ia pra outra turma, que não a de minha prima. Foram muitos os momentos em que, eu, na alfabetização, fiquei lá, na parede do Jardim II, vendo os moleques - como se eu tb não fosse - brincar de massinha. Enquanto minha sala deveria estar em alguma atividade mais adulta e dinâmica - atividade de alfabetização!!! - ,lá estava eu a sofrer a punição dos olhares das crianças pequenininhas...

Eu acho que na verdade isso nunca surtiu efeito. Porque eu nunca fui capaz de controlar esses arroubos, que, vejam bem, nunca foram suficientemente fortes para me definir como 'levado', mas também longe estavam de me atribuir um bom comportamento. Eu sempre fui assim, meio 'indefinível", e até hoje não consigo me rotular em muitos aspectos.

Outro momento merecedor de destaque negativo foi quando me lavaram a língua com sabão, por ter dito algum palavrão. Sinceramente, não acho que merecia essa punição, pois nem sequer era reincidente nesse tipo de crime !! Deve ter sido a única vez na vida em que disse um palavrão na escola, mas, como a sorte sempre jogava contra mim nessas horas, coube de meu delito ser investigado e devidamente julgado.

Outra vez minha mãe chegou em casa, decepcionadíssima, porque a professora havia 'fuxicado' - sim, fuxicado- a ela que eu, numa das festinhas de aniversariante do mês, passara o dedo no bolo !!! Eu gostaria de ver esse vídeo, pois, não tenho lembrança alguma dessa atitude!! Na época eu tentei me defender, mas, como meu currículo jogava contra mim, até eu mesmo tentei me convencer de que havia feito aquilo. Embora não o tenha feito. Pelo menos não lembro, que coisa!!

Essas lembranças de criança são mesmo curiosas, pois vão ficando registros de momentos os quais não escolhi registrar. Não há um catálogo organizadinho de momentos passados que eu posso consultar quando eu quiser. Eles apenas vão surgindo, em 'flashes', sem impedimentos e à revelia de minhas escolhas. Eu posso estar fazendo uma prova de concurso, quando a memória de meu pé entrando numa fossa vem à mente. Posso estar numa noite de insônia, quando uma aranha enorme vem pelo teto a me perseguir, enquanto grito pela minha mãe, da janela de casa. Eu posso estar digitando um trabalho, quando a lembrança de minha queda duas vezes consecutivas na mesma poça de lama, enquanto aprendia a andar de bicicleta, me aparece.

É-me estranho e confortador ter todas essas lembranças. De uma infância por diversas vezes sofrida, mas também proveitosa. Não sei a fórmula que define um levantamento positivo de determinada época de nossas vidas, mas sei que as variantes estão lá, embaralhadas, e me deixam ora triste, ora alegre, a depender da memória e do momento em que ela surge. Continuo, assim, sem definição, mas me apego às lembranças, pra ajudar a me esboçar. Mas eu nunca fui uma criança levada, vai... Pelo menos, não é desse jeito que eu me lembro de mim.

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