No meio do nada, assim seguia Maria: sentada à beira da estrada num velho tamborete, descascando milhos, debulhando grãos...um meticuloso trabalho de formiga operária. No dia anterior, ela sozinha havia colhido todas aquelas espigas do campo de milho da cidade. E naquele dia, iria ela própria sentar à beira do fogão quente, mexer as panelas e preparar canjica, pamonha e bolos de milho para a festa de São João.
Era todo dia essa rotina: alguns dias de plantação, seguidos de dias de espera, os quais ela passava tecendo redes de descanso com fios de palha seca da casca do milho velho. Quando o milho dava, Maria gastava um dia inteiro na colheita, sob o sol escaldante. E quando já tivesse colhido o suficiente, começavam os preparos. Senta, separa, descasca, debulha, enxuga o suór. Não pensa, tritura, lamenta, descasca novamente. Chora e debulha novamente. E assim continua, despejando sobre os grãos suas lágrimas.
Naquele dia, enquanto as moças da cidade preparavam-se entre tranças e vestidos de chita, Maria debruçava-se sobre a panela, mexendo a colher até engrossar a mistura. Enquanto os rapazes se empapavam de loção de feira e bebiam seus quartinhos de cana à volta da fogueira à espera das moças faceiras, Maria punha-se a se entregar ao estado de semi-moribundez em que vivia entre as panelas que ferviam.
Eis que chega a noite, começam os folguedos, o som das sanfonas e ilumina-se a cidade. Mas Maria não pode participar da festa, pois suas costas doem por demais, por causa de todo o trabalho de dias atrás...
E, novamente, Maria chora sob os lençóis pesados, ao mesmo tempo em que bombinhas explodiam do lado de fora e todos comiam com vontade todos os pratos preparados pela pobre Maria.
Após a festa, todos foram dormir, cansados das folias de uma noite feliz, no momento exato em que Maria acordava do último pesadelo. Cinco da manhã, Maria se levanta, brilho opaco no olhar, como feitiço, enquanto nas outras casas a cidade preparava-se para dormir. Maria segue o caminho da plantação, descalça, levantando poeira, mais poeira do que toda a quadrilha junina na noite passada levantara. Maria segue decidida, foice em punho e chega a seu destino: a plantação de milho. Orquestrada pelos sons de seus gritos ensandecidos, Maria desfere golpes certeiros sobre as plantas, à medida em que as pessoas na cidade iam se acordando uma a uma. Enquanto a dança da foice de Maria se dava, acima, abaixo, folhas para um lado, raízes para outro, as pessoas seguiam a melodia dramática da trilha sonora dos gritos com os golpes secos.
E se surpreenderam com o espetáculo que viam. Mais do que com qualquer luz, brilho, som ou beijo da noite enterior. Toda a cidade, recém-acordada, presenciou o (des)controle de Maria, que se libertava dos grilhões a que era submetida.
E, tal qual Maria nos dias de tristeza, todos choraram. Ela, mãos já ensanguentadas, pés de milho mortos sob seus pés, e a triste canção do choro de toda uma cidade.
Mas não eram só as pessoas que choravam. Choravam também os milhos mortos, os grãos secos e as folhas no chão. Choravam a fumaça da fogueira apagada, os balões que sobravam no céu e as garrafas e copos sujos jogados no arraiá.
Foi quando, num último gesto, cai Maria, toda suja, entregue aos restos de sua surpreendente atitude. Cai Maria, morta, como os pés de milho.
***
E, sobre seu corpo e sua solidão, cai uma singela bandeirinha de São João. Vermelha, da cor de seu sangue.
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