terça-feira, janeiro 29, 2008

Demônio na estrada


Meia-noite. A mata seca e alta já começara a rarear no acostamento. Já podiam-se ver campos igualmente secos entre as folhas, através de olhos muitos deles úmidos já de saudade do que deixaram. Viagem de 12 horas não é fácil para ninguém, por mais que se acostume com o sacolejo vertiginoso. A meio caminho de viagem em direção a São Pilar do Céu, muitos daqueles rostos levavam marcas de uma saudade sendo construída. Aquele olhar terno formado quando se imagina entes queridos.

O ônibus não tão velho, não muito confortável, porém não insuportável, trazia 45 pessoas, incluindo o motorista. O mais jovem na verdade ainda sequer possuía idade, pois viajava numa placenta, pertencente a Maria da Graça, de 13 anos. Expulsa de casa por seu pai, Maria da Graça levava poucas roupas e muita aflição em direção à fazenda de tios, os quais mal conhecera.

Logo atrás de Maria da Graça estava Dona Zeferina Baudalho, do senso de sua consciência nonagesimal. Formação na vida: benzedeira. Seguia para São Pilar do Céu em busca da paz e do sossego que sempre perseguira. Não, Zeferina não estava se aposentando. Ia, junto com seu neto mais velho, Augusto dos Anjos da Silva, em busca de notícias de sua amada e sumida filha, Giselda Baudalho, que rumara para aquelas bandas há anos, e extinguira inexplicavelmente suas cartas. Dona Zeferina levava consigo a esperança do reencontro e mirava a todo minuto a foto da filha saudosa , como se para lembrar que a cada curva se aproximava dela.

Em seguida, pessoas de todos os tipos. Pessoas humildes de todos os tipos. Choro de crianças pequenas era quase sempre audível. Choramingos de impaciência, por percorrer uma distância tão longa. Em cada assento, uma história diferente, como a de Manuela e Juvenir, recém-casados, buscando em São Pilar do Céu uma oportunidade de emprego oferecida ao jovem rapaz. Como a de Antônio Pedro, seminarista, devoto e santo, rumando em direção a uma visita a serviço de sua paróquia, como cumprimento de um roteiro carismático promovido por seu Bispo, no intento que chamava de "União das Almas católicas Sertanejas". Completando as filas, famílias inteiras: filhos, pais, mães, sobrinhos, netos, bisnetos, tatarenos de alguém, seguiam seus destinos, cada um por um objetivo próprio.

Esse ônibus carregava sentimentos dos mais diversos. Felicidade pela saída, medo pela chegada, ansiedade pelo inesperado, tédio pelo obrigação, cansaço pela espera, tudo isso se misturava numa aura multi-color que encobria o veículo pelo caminho asfaltado entre matas já escassas, como uma bala a percorrer um sulco esburacado. O ônibus seguia firme em seus solavancos, que mais lembravam artrites em idosos, enquanto muitos de seus passageiros já desfrutavam do ronco nervoso de mais uma noite mal-dormida.

E, como um flash de luz, como num take de cinema, a câmera lenta começou a rodar. E junto com ela, malas, roupas, escovas, bolsas, sacolas, óculos, jornais, pertences diversos. Os passageiros confundiam-se com seus objetos, na dança disforme provocada pelo capotamento que começara sem aviso. Não fosse pelo súbito enjôo que sentira antes do acontecido, Maria da Graça morreria sem ter presenciado a mandíbula do jovem seminarista Antônio Pedro esmagar-se em osso e sangue no banco da frente. Ao mesmo tempo em que Dona Zeferina Baudalho enforcava-se com o próprio cinto de segurança, tentando sem sucesso agarrar as mão de seu neto, Augusto dos Anjos, cruelmente arremessado para fora numa das capotadas. Maria da Graça, com as mãos na barriga, era um misto de batimentos cardíacos, lágrimas, desespero e explosão interna. Caso as memórias de sua quase-morte fossem levadas consigo às portas do plano superior, ela sentiria seu abdômen, juntamente com seu filho, ser esmagado por ferragens destemidas, contorcidas, maceradoras de sua carne jovem e fértil. Uma cesariana crua e assassina fora feita enquanto o banco em que viajava se dobrava em 4 partes diferentes sobre e sob o peso de outros bancos. Sobre e sob os corpos de outras pessoas. Manuela e Juvenir, os recém-casados, despediam-se aos gritos de socorro. Irônico, não fosse trágico, terem ao final de tudo, como única parte intacta em seus corpos, as alianças baratas compradas por Juvenir a mil prestações antes do casório.

Mato, vidro e ferro, tudo embolado no sangue das vítimas. Uma capotada. Dois mortos, dentre eles o motorista, Fagundes, que, apesar de ser o primeiro esmagado, foi o único a presenciar a aparição que provocara o acidente. O outro falecido instantaneamente havia sido o bebê de Maria da Graça, arrancado violentamente do ventre de sua mãe pelas garras oxidadas do ônibus. Segunda capotagem. Mais 21 mortos. Terceira. Mais 17 mortos. Instantaneamente.

Ao final da quarta, os cinco que ainda restavam, caso ainda se podia chamá-los por seus nomes, haja vista o estado físico de cada um, davam seus últimos gritos de horror. Maria da Graça, sangrando por todos seus orifícios, era desespero puro, encoberta pelo pedaço de carne roxa que se tornara Dona Zeferina Baudalho. Ao lado delas, Antônio Pedro, o seminarista, não possuía mais face, mas sim uma máscara ornada por lentes de óculos enfiadas em seus globos oculares. Tremia seus últimos movimentos de dor, ao lado de Manuela e Juvenir, que, incrivelmente, haviam sido os menos danificados, não obstante o corte profundo na testa dela e as múltiplas fraturas expostas nas pernas dele. Mesmo assim, ainda vivos, porém quase-mortos, todos os cinco ainda gritavam, amontoados uns sobre os outros, quando o fogo começou a tomar tudo o que sobrara da tragédia. Já anestesiados de dor, os cinco últimos a perder suas vidas no acidente do ônibus para São Pilar do Céu queimaram como mártires numa fogueira.

E, se pudéssemos, como naquele take de câmera lenta, voltar a fita, para saciar a curiosidade sobre o que acontecera, veríamos a meiga figura que fizera Fagundes desviar tão impetuosamente, àquela velocidade, naquela escuridão. De pé, ainda no meio da pista, a sinistra figura de uma garota observava o que não sobrarara do ônibus para São Pilar do Céu. Enquanto o ônibus cintilava em chamas e borbulhava em ferro e borracha e pele derretidos, na escuridão da noite da estrada entre as folhas de uma mata do sertão, 45 vidas eram incineradas. E, ateando fogo com os dentes, sorria, do asfalto, uma garota. Sorria, do asfalto, mais um demônio.

2 comentários:

Anônimo disse...

eu ja tava me perguntando.. e cade o demônio na historia.. e eis que ele aparece no final :D
uhauhauhauhahua
bom se fosse daki umas 1:30hr que a casa taria silenciosa e escura.. eu ia sentir medinho! mas nao.. eu nao senti nojinho :D acho memso eh que tu deveria escrever um livro.. de terror e suspense que são os que eu mais gosto :D

;****

Josy Poulain disse...

legal...
xD

Fica bem...