terça-feira, agosto 29, 2006

Ele por ela...Ela por ele


Ela sempre o via no metrô. Seu olhar de hipnose nunca deixava transparecer o que sentia por ele, sabia disso. Mas o medo de entregar suas intenções a um estranho conhecido a fazia demonstrar menos interesses do que a própria falta de interesse.
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Ele a notara antes mesmo de ser notado por ela. Quando viu seus cabelos vermelhos pela primeira vez, teve a certeza de que entre aqueles cachos faltavam seus dedos. Mas ele não notara sequer um mínimo gesto de aceitação por parte dela. Ao menos um rabo de olho...nunca! E isso o castigava mais do que a espera por aquele rotineiro horário do metrô, a hora em que iria revê-la.
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O tempo passava, e a estátua dela assim permanecia: estática, sóbria, concentrada em guardar para si cada "flash" de momento que sobrava quando a atenção dele parecia não estar lá. Ela, com todas as dificuldades que seu temperamento lhe impunha, passava toda a viagem de ida ao trabalho tentando guardar os cheiros que ele exalava, o jeito dele bocejar, o modo com andava...Mas nunca o deixava penetrar na redoma que criara em torno de si...
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Ele só via aqueles cachos vermelhos à sua frente. Nos degraus, nos corrimões, no passar do vento só via o movimento daqueles cabelos vermelhos. Já cansara de se imaginar agarrado àquele pescoço, de pensar quão bom seria caso pudesse chamar a atenção dela de alguma forma. Mas ela parecia de gelo. E não derretia.
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Eis que um dia a redoma dela começou a rachar. Aproveitando-se de um cochilo dele, pôs-se a observar sua feição enquanto dormia. A calma daquela respiração, o leve cair de seus cabelos lisos sobre a testa, o jeito dos seus lábios fechados num sono descompromissado. Ela deixou-se enfeitiçar por aquela visão de seus olhos apaixonados, eternecidos pela inocência que ele emanava. Aquele cochilo aguçou seu espírito maternal, brotando nela uma vontade de aninhá-lo em seus braços e de embalá-lo. A doçura daquele sentimento e daquela ternura provocou uma leve rachadura na sua redoma protetora, fazendo ressonar um leve tilintar, que o fez abrir os olhos.
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Ele despertou e a fitou no exato momento em que ela, divagando em seus pensamentos mais carinhosos, mostrava um sorriso de encantamento direcionado exatamente para ele. Disso, não podia se enganar. Quando ele percebeu que era ele o alvo daquele olhar tão terno, não havia espaço em seu peito para tanto sentimento. Sentiu-se um sonâmbulo ao levantar, por achar que aquilo só podia ser a continuação de algum sonho. Ainda dormia, não era possível!Mas sentia suas pernas e elas o guiavam na direção dela, decididas.
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Surpresa por ter sido flagrada num momento que considerava tão íntimo, ela não soube como agir. Foi quando percebeu que ele se levantava. Ele vai descer, ele vai descer. Não pode vir aqui, não será possível. Mas ele continuava se aproximando e, a cada passo que ele dava, mais ela se encolhia à janela, quase infiltrando-se no vidro, com vontade de se jogar, para evitar aquele aguardado (porém temido) momento em que ele lhe dirigisse a palavra.
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Inadvertida, inconsciente e instintivamente, ele parou ao seu lado, sentou-se e pôde perceber que seus olhos eram ainda mais verdes do que conseguia ver a determinada distância. Sem pensar, apenas sentindo, pousou carinhosamente sua mão sobre a dela e notou um leve tremer por parte dela.
*
Impressionada, encantada e extasiadamente, ela sentiu quando o ombro dele tocou o seu e pôde perceber que os cabelos dele eram ainda mais lisos do que conseguia ver a determinada distância. Sem pensar, só sentindo, notou que ele, carinhosamente, pousara sua mão sobre a dela e notou um leve tremer por parte dele.
***
E, assim, de mãos dadas, seguiram viagem. Nesse dia, nenhum deles desceu em seu destino, pois tiveram a certeza de que o verdadeiro lugar de cada um era segurando a mão do outro. Na última estação, levantaram-se, saíram do vagão e enfim se encararam de frente, sem dizer palavra alguma. Naquela hora, ficou encerrada, mais do que a alegria de quebrar os próprios limites, a felicidade de se ver refletido no olhar do outro. E desse jeito perceberam que seriam naqueles reflexos suas moradias dali por diante.

segunda-feira, agosto 21, 2006

Depois do São João


No meio do nada, assim seguia Maria: sentada à beira da estrada num velho tamborete, descascando milhos, debulhando grãos...um meticuloso trabalho de formiga operária. No dia anterior, ela sozinha havia colhido todas aquelas espigas do campo de milho da cidade. E naquele dia, iria ela própria sentar à beira do fogão quente, mexer as panelas e preparar canjica, pamonha e bolos de milho para a festa de São João.
Era todo dia essa rotina: alguns dias de plantação, seguidos de dias de espera, os quais ela passava tecendo redes de descanso com fios de palha seca da casca do milho velho. Quando o milho dava, Maria gastava um dia inteiro na colheita, sob o sol escaldante. E quando já tivesse colhido o suficiente, começavam os preparos. Senta, separa, descasca, debulha, enxuga o suór. Não pensa, tritura, lamenta, descasca novamente. Chora e debulha novamente. E assim continua, despejando sobre os grãos suas lágrimas.
Naquele dia, enquanto as moças da cidade preparavam-se entre tranças e vestidos de chita, Maria debruçava-se sobre a panela, mexendo a colher até engrossar a mistura. Enquanto os rapazes se empapavam de loção de feira e bebiam seus quartinhos de cana à volta da fogueira à espera das moças faceiras, Maria punha-se a se entregar ao estado de semi-moribundez em que vivia entre as panelas que ferviam.
Eis que chega a noite, começam os folguedos, o som das sanfonas e ilumina-se a cidade. Mas Maria não pode participar da festa, pois suas costas doem por demais, por causa de todo o trabalho de dias atrás...
E, novamente, Maria chora sob os lençóis pesados, ao mesmo tempo em que bombinhas explodiam do lado de fora e todos comiam com vontade todos os pratos preparados pela pobre Maria.
Após a festa, todos foram dormir, cansados das folias de uma noite feliz, no momento exato em que Maria acordava do último pesadelo. Cinco da manhã, Maria se levanta, brilho opaco no olhar, como feitiço, enquanto nas outras casas a cidade preparava-se para dormir. Maria segue o caminho da plantação, descalça, levantando poeira, mais poeira do que toda a quadrilha junina na noite passada levantara. Maria segue decidida, foice em punho e chega a seu destino: a plantação de milho. Orquestrada pelos sons de seus gritos ensandecidos, Maria desfere golpes certeiros sobre as plantas, à medida em que as pessoas na cidade iam se acordando uma a uma. Enquanto a dança da foice de Maria se dava, acima, abaixo, folhas para um lado, raízes para outro, as pessoas seguiam a melodia dramática da trilha sonora dos gritos com os golpes secos.
E se surpreenderam com o espetáculo que viam. Mais do que com qualquer luz, brilho, som ou beijo da noite enterior. Toda a cidade, recém-acordada, presenciou o (des)controle de Maria, que se libertava dos grilhões a que era submetida.
E, tal qual Maria nos dias de tristeza, todos choraram. Ela, mãos já ensanguentadas, pés de milho mortos sob seus pés, e a triste canção do choro de toda uma cidade.
Mas não eram só as pessoas que choravam. Choravam também os milhos mortos, os grãos secos e as folhas no chão. Choravam a fumaça da fogueira apagada, os balões que sobravam no céu e as garrafas e copos sujos jogados no arraiá.
Foi quando, num último gesto, cai Maria, toda suja, entregue aos restos de sua surpreendente atitude. Cai Maria, morta, como os pés de milho.
***
E, sobre seu corpo e sua solidão, cai uma singela bandeirinha de São João. Vermelha, da cor de seu sangue.

domingo, agosto 20, 2006

Sol


O sol apareceu pra contar que as nuvens de ontem foram encomendadas por ele.
'Muito cansado, ultimamente', ele disse.
Logo, chamara as nuvens para ocupar o espaço dele no céu.
Só que as nuvens cumpriram bem demais o seu papel.
Empolgadas com a importância de tal substituição, elas partiram a ocupar todas os lugares que antes pertenciam aos raios do sol.
Com sede de eficiência, taparam todas as frestas, fecharam todas as brechas...
E, sem querer, criaram uma escuridão nunca antes vista, uma espécie de sombra incessante, escurecendo todos os espaços.
*
Eis que, com o recesso do sol, todos perceberam que nada pode susbtituí-lo, e que ele é, indubitavelmente, essencial.
*
A luz, mais do que a beleza de enxergar, traz a sensação psicológica de normalidade à rotina. Traz a calma necessária para que o andar da carruagem não perca o rumo da estrada, por mais sombras e obstáculos que ela possua...por mais que ele esquente, queime e seque sem pesar.
Mas, ele floresce, ilumina e envivece o que estava quase morto.
Depois daquele dia, nunca mais o sol fez suas malas.
E voltou ao velho hábito de despedir-se de um lado, apresentando-se ao outro.
Sempre lá....onisciente...como devem ser os melhores contadores de histórias...

terça-feira, agosto 08, 2006

Rimas de Pedaços


Ele,
nos passos,
se pergunta
se o tempo
que tem
é suficiente
para agir
do modo
como gosta.
E a resposta,
tão logo,
a sorrir,
faz presente
se mais além
o sentimento
junta
os pedaços
dele.

segunda-feira, agosto 07, 2006

A flor


Sol. Chuva. A flor. Água. Seca. Folha. Falha. A flor. Espinho. Néctar. Abelha. Pé. A flor.
*
Pétala esmagada.
*
Mesmo assim, flor.
*
Entregue, a flor se esvai, esquecendo de que o poder das circunstâncias é menor do que a beleza da estação.

sábado, agosto 05, 2006

Intenção


Se ele se esforça
e tenta corrigir
falta força
pra transmitir

A mudança
que ele tenta
como uma trança
se desfaz, lenta

Se ele reluta agora
em vez de mudar
o agir de outrora
o faz parar

Segue o coração
no caminho de amar
reconhecendo a intenção
de melhorar

Mas isso não se faz
ele se perde
nos caminhos lá de trás
e se esquece

que os momentos de paz adormecem quando os sonhos sem avisar aparecem...

terça-feira, agosto 01, 2006

A hora dos cafajestes


E se disseminam as bandeiras de cores vivas e de números fáceis pelas esquinas, pontes e sinais dessa cidade. E se avolumam as promessas baratas, as politicagens mascaradas pela 'política', a troca de interesses, as ilusões. É chegado o momento de discutir o já sabido, de 'fingir' apoio em troca de algum favor pessoal, de ganhar 'simpatias' falsas e abraços irrelevantes, mas bonitos de se ver na foto. É chegada a hora do voto-mercadoria, do comércio de ideologia, da sonegação, do "caixa 2". É chegada a hora da mentira, da ciência do falsismo, da descaratez, da cara lavada. Da velha e mascarada 'política do pão e circo'. Da vetusta dicotomia 'direita x esquerda' ganhar as padarias, os bares e as filas de banco. É chegado o momento de comentar quem apareceu com o terno mais bonito. De quem roubou mais ou menos na gestão passada. De quem vai continuar votando pela manutenção do 'status quo'. É chegado o momento de discutir quem pareceu menos nervoso com a última pergunta do William Bonner. É chegada a hora de rir da falta de dedos, das línguas presas. É chegada a hora de amaldiçoar os almofadinhas do poder, cujos tronos são adquiridos por herança disfarçada, através de uma simples troca de coroa possibilitada por um caríssimo curso de oratória no Sul. É chegada a hora de pregar 'bottoms' com rostos nunca vistos, de colar adesivos com nomes nunca lidos, de pintar os muros com frases já prontas e de vender opiniões nunca sequer pensadas. É chegada a hora da fantasia, da comédia, da chanchada, da cafajestagem em sua prática mais abominável. É chegada a hora das novas técnicas de marketing. É chegada a hora do exercício mais cruel da publicidade. É chegada a hora dos absurdos, das enganosas manchetes. Das puxadas de perna, das traições, das brigas entre coligações, de jogar a favor do vitorioso. É chegada a hora do parecer ofuscar o ser de cada um. É chegada a hora dos gastos inapropriados, das 'doações' vendidas, das falsas modéstias. É chegado o momento dos falastrões. Dos fanfarrões. Dos engravatados com suas pastas repletas de cartões estampados com sorrisos mentirosos...
***
É chegado o momento da culpa, da tragédia, da depressão e do descrédito no sistema. É chegado o momento de lamentar a estrutura, de sonhar com procedimentos inovadores. É chegada a hora de desejar o indesejável. De querer o sonho de uma utopia irrealizável. E é chegado o momento de se perder nos caminhos da tecla verde. É chegada a hora de cumprir o dever, como se deixasse de ser um direito conquistado.
***
É chegado o momento de ser hipócrita. Hipócritas, sirvam-se !!! Há diversas oferendas esperando uma mão para empurrá-las em meio à maré da enganação.